terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A Crise e e o cumprimento da Constituição


Constitucionalistas pensam que as dificuldades levam os políticos a testar limites.
O constitucionalista Jorge Miranda não podia ter sido mais claro quando entrou na discussão sobre a possibilidade de incluir o limite ao défice na lei fundamental: "Não é por estar na Constituição que o problema é resolvido. É uma ilusão." O professor universitário - conhecido por ser o pai da Constituição - pôs o dedo na ferida numa altura em que volta a estar em cima da mesa a possibilidade de mexer no texto constitucional (seria a oitava vez em 35 anos) e em que, ao mesmo tempo, parece cada vez mais difícil cumpri-lo.  
 E a explicação desta dificuldade vem dos especialistas contactados pelo í a crise torna mais difícil cumprir a mãe de todas as leis. O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia admite que "os direitos estão sempre submetidos à reserva do possível". E acrescenta: "Reconheço que a medida de satisfação desses direitos pode variar perante a situação do país. Se estivermos em crise tem de haver aí condicionalismos perante uma situação económica." Mas Bacelar Gouveia também defende que, ultrapassada a crise, devem ser repostos todos os direitos que foram retirados. No mesmo sentido vai a opinião do constitucionalista Tiago Duarte, que afirma que "numa altura de crise os órgãos do poder político tentam testar os limites da Constituição e actuar na fronteira do constitucionalmente admissível".  
 A verdade é que não faltam juristas a lançar dúvidas sobre a constitucionalidade de alguns dos sacrifícios pedidos aos portugueses, sobretudo com o agudizar da crise, como os cortes nos subsídios de férias e de Natal dos pensionistas e funcionários públicos ou o aumento para o dobro das taxas moderadoras nos centros de saúde e nas urgências nos hospitais.  
 Habitação para TODOS? Cada um dos quase 300 artigos da Constituição da República de 1976 pode ser alvo de várias interpretações, mas se o texto constitucional for levado à letra muitas das normas inscritas ficam por cumprir. A Constituição projecta um mundo ideal, onde todos têm direito à habitação, à justiça, à educação ou ao trabalho. Mas a prática fica longe do texto 

Uma coisa é a Constituição dizer, por exemplo, que "todos têm direito, para si epara a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto", outra é os 10 milhões de portugueses terem uma casa à imagem da lei fundamental. "Podia estar na Constituição que as pessoas têm o direito à felicidade, mas não poderiam pôr o Estado em tribunal por estarem deprimidas", justifica Pedro Bacelar Vasconcelos, explicando que a lei fundamental apenas se limita "a apontar para objectivos".  
 Em todo o caso, os constitucionalistas ouvidos pelo i estão convictos de que uma boa parte dos objectivos definidos no regime democrático foi atingida. "Se olharmos para estes 35 anos há a efectivação do cumprimento desses direitos. O analfabetismo desapareceu, o direito à saúde tem sido cumprido, a cobertura dos riscos sociais tem sido assegurada", vai apontando Bacelar Gouveia Tiago Duarte concorda e reconhece o esforço feito pelo poder político para conseguir cumpri-la durante os mais de 30 anos da democracia. "A Constituição está longe de ser o problema do país", remata  
 
Ainda assim, a lei fundamental volta a estar no centro do debate político, depois de o acordo intergovernamental que saiu do último Conselho Europeu definir que o caminho para reforçar a confiança entre estados-membros deve passar pela inscrição na Constituição "ou equivalente" de um limite de 0,5% para o défice estrutural. Entre os especialistas a ideia está longe do consenso. Bacelar Gouveia é a favor e acredita que é a melhor maneira de acabar com "os truques eleitorais". Já Pedro Bacelar Vasconcelos defende que "não tem qualquer utilidade" e lembra que "o nosso sistema constitucional já prevê inúmeras medidas que abrangem o equilíbrio orçamental".  
 A discussão também divide os partidos. Se o governo quer avançar com uma revisão e incluir a norma directamente na Constituição, o PS entende que é suficiente inscrever a regra numa "lei de valor reforçado". Se os dois partidos não se entenderem, o texto da lei fundamental fica como está, já que qualquer alteração exige o apoio de dois terços dos deputados, o que implica o entendimento entre PSD e PS.  
 Um dos principais pecados da lei fundamental "é o excesso de directrizes e de instruções no que diz respeito às políticas activas", diz Pedro Bacelar de Vasconcelos. Isto, realça o constitucionalista, até pode sugerir que "existe alguma desconfiança em relação aos nossos eleitos". O presidente da Associação Nacional de Juízes,  António Martins, admite que "a Constituição ser demasiado extensa é uma crítica possível" e defende que "qualquer texto legal é tanto mais claro e susceptível de ser cumprido quanto mais curto for".  
 Mas por aqui é difícil que vá uma revisão à lei fundamental. As alterações têm sido sempre dirigidas a normas concretas e não às questões mais genéricas, apesar de a discussão também existir.  
 Por exemplo, sobre o preâmbulo, que remonta à origem do texto constitucional e que, escrito no período pós-25 de Abril (1976), conserva referências ao "fascismo" e ao "colonialismo" e fala na decisão portuguesa de "abrir caminho para uma sociedade socialista". A esquerda tem resistido sempre que a direita, nomeadamente o CDS, levanta o tema. A revisão não é, aliás, coisa fácil de conseguir; está minimamente reservada de forma a garantir a estabilidade do texto. Neste momento bastariam dois terços dos deputados, já que o período de revisão ordinária (de cinco em cinco anos) está activo, uma vez que a abertura de uma revisão extraordinária exige a aprovação por quatro quintos dos deputados.

 Luís Claro
 I,  20-12-2011

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