sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Justiça segundo o sociólogo


Opinião de Pedro Soares de Albergaria, juiz de Direito

Em entrevista no Boletim da Ordem dos Advogados o dr. António Barreto perora sobre os problemas pertinentes à Justiça, matéria que naturalmente apoquenta um homem preocupado com a coisa pública A entrevista é a imagem do grau de ignorância e de preconceito com que hoje se aborda o judiciário. Analisemos algumas das opiniões aí prodigalizadas.
Insurge-se contra a composição do Conselho Superior da Magistratura que “pertence aos juizes”. Apesar de o presidente e o Parlamento poderem nomear vogais “acabam sempre por ser magistrados judiciais”. Uma breve peregrinação à página do CSM informá-lo-ia que nenhum dos membros do CSM nomeados pelo PR e pela AR é juiz!
Outra preocupação é a “autogestão” dos juizes. Esta nada tem que ver com a “independência” (não lhe ocorre, parece, a existência de recíprocas capilaridades entre as duas coisas). E para tratar daquela “autogestão” havia que implicar (como se não estivesse implicado) o Parlamento; o que tem sido impossível porque o “Parlamento parece que tem medo dos juizes”, imagine-se, porque “muitos dos governantes ou deputados são, eles próprios, (…) juizes”. Trata-se de uma falsidade: os juízes estão sujeitos ao mais draconiano regime de exclusividade que a República conhece e a lei impõe.
Depois, numa extraordinária amálgama argumentativa, conclui que tal como o PR, a AR e o Governo também os juizes deveriam depender do “povo”. Ora, a legitimidade dos juizes resulta, como se sabe, da Constituição nos termos da qual são os tribunais os órgãos de soberania que administram a justiça precisamente… “em nome do povo”. Só uma perigosa confusão entre votos e democracia pode justificar uma visão tão sincopada.
A questão dos “prazos” também não lhe escapa. Acha ele ser “inaceitável que os juízes não tenham prazos tão duros e tão severos como têm as outras partes, nomeadamente advogados e arguidos” que “por 24 minutos, podem perder tudo, todas as oportunidades”.
Ora, desde logo os juízes têm “prazos”. Quanto a saber porque não os cumprem, por vezes, há várias explicações: pouco rendimento pessoal (uma minoria); muitos mais processos do que aqueles que seriam recomendados pelo senso comum e pelo Conselho da Europa (explicação-padrão); ou processos relativos a gente de substância, pessoas com dinheiro e capacidade para abusarem de expedientes dilatórios facultados pelo legislador.
Portanto, ou o problema é do juiz, ou da quantidade ou da qualidade dos processos. Só naquele primeiro caso é que entra outra questão: o que sucede se não cumprirem. A resposta são os processos disciplinares, sendo que em nenhuma hipótese o magistrado corre o risco de “perder tudo” ou “todas as oportunidades” (um mistério insondável que o intelectual não ilumina). E nada “perde” precisamente porque o juiz não é “parte”, ao contrário do que parece cogitar o pensador em olímpico desconhecimento do que é a função judicial.
Há também a estafada ladainha dos juizes “novos” e “velhos” e da experiência Aqui, quanto ao CEJ, a opinião do sociólogo não é “firme”. De acordo com a metodologia própria das ciências ocultas, ele próprio assume que é mais um “sentimento” “contrário ao CEJ” (supomos assim – matéria para reflexão filosófica – que entre o “sentimento” e a “opinião firme” existirá a “opinião”).
Isto porque o CEJ formou um juiz que é um “ser humano especial”, “intocável” e “invulnerável” e parece que toda essa carapaça cairia com alguns anos de “experiência” noutras áreas profissionais. Esta narrativa da experiência tem muito que se lhe diga: a “experiência” só é uma vantagem se for uma “boa experiência”; se for “má experiência”, não se torna uma vantagem só por ser de muitos anos. Ela permanece uma má experiência com muitos anos.
Por fim, aborda o tribunal de júri. O opinador sugere (e nisto estamos de acordo) que “o sistema de jurados deveria ter uma expansão maior em Portugal”, pois “os jurados são um contrapeso dos juizes” e assim, intui-se, aquela “expansão” impediria o juiz de “ser um déspota na sala”.
Diante deste delírio convém informar o dr. António Barreto que são as “partes” quem pode requerer a intervenção do júri. E assim, se esse requerimento não tem expressão (como efectivamente não tem) e se aquela intervenção teria por efeito impedir que o juiz fosse “um déspota na sala”, então talvez se siga que tal intervenção não tem expressão porque o juiz não é “um déspota na sala”.
Jornal de Notícias 2011-11-25

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