Mandado de Detenção Europeu – prestação de garantias pelo Estado requerente – entrega diferida ou condicional
I - O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado noutras ocasiões sobre os casos em que o MDE contém erros ou imprecisões de conteúdo, sempre no sentido de que não constituem, por si só, uma causa de recusa de cumprimento, pois tal não está previsto na Lei. Mas obriga a que o Estado emissor deva fazer correcções ou esclarecimentos posteriores, desde que ao recorrente sejam facultados atempadamente os meios de defesa, nomeadamente o de ser ouvido e de poder opor-se oralmente ou por escrito antes da decisão final.
II - Também para salvaguarda desses direitos de defesa, as correcções posteriores devem constar da decisão que vier a ordenar a entrega do requerido, pois só assim se poderá cumprir integralmente o princípio da especialidade.
III - Parece resultar que para o ordenamento jurídico búlgaro, ou, pelo menos, para uma certa e determinada interpretação desse ordenamento, a circunstância de o ora recorrente ter sido representado por um advogado no julgamento que se efectuou, ao qual foram notificadas as decisões judiciais em causa, tornam definitiva a condenação proferida (a 20 anos de prisão por crime de homicídio), apesar de o recorrente nunca ter sido notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e desse advogado nem sequer ter sido constituído por si, mas pelo seu Pai.
IV - Tal orientação não pode ser aceite face aos princípios gerais da Constituição da República Portuguesa e aos que se encontram vertidos no processo penal português, pois não pode haver julgamento penal válido e eficaz sem que ao arguido sejam concedidos todos os meios de defesa, entre os quais avultam o de se lhe dar conhecimento pessoal dos factos imputados e o de se lhe facultar a possibilidade de se defender pessoalmente no julgamento (direito de audiência).
V - Assim, o Estado português não deveria admitir a entrega do condenado se a condenação em causa, proferida na absoluta revelia do arguido, fosse considerada definitiva, isto é, transitada em julgado, pois tal iria contra os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente, contra o disposto no art.º 32.º, n.ºs 1, 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa.
VI - O artigo 13.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em casos especiais”, menciona que garantias são essas no caso de o mandado de detenção europeu ter sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência.
VII - Entretanto, como bem alerta o Ac. do STJ de 02.03.2011, proc. 213/10.7YRPRT.E1.S1, “foi proferida a Decisão Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009 que alterou as Decisões Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido”.
VIII - Tal Decisão Quadro, que entrou em vigor em 28.03.2011, ainda não foi transposta para o direito português interno, mas, mesmo inexistindo norma interna, há uma obrigação do tribunal nacional de interpretação à luz do teor e finalidade da decisão quadro, tendo como limite o respeito pelos princípios gerais de direito do Estado Membro em causa.
IX - Para o caso ora em apreço, há que realçar que, no presente momento, o Estado búlgaro ainda não deu garantias suficientes, face ao disposto no art.º 4.º-A da Decisão Quadro 2009/299/JAI. Com efeito:
- O recorrente nunca foi notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e não esteve presente no julgamento;
- Não foi notificado pessoalmente e desse modo informado da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão;
- Não foi informado de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;
- Não conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal;
- Não foi notificado da decisão e expressamente informado do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;
- Não declarou expressamente que não contestava a decisão;
- Já requereu novo julgamento, por mera cautela de patrocínio, mas ainda não lhe foi comunicado que o requerimento foi deferido;
- Não foram dadas garantias formais de que será notificado pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial.
X- O crime de homicídio para o ordenamento jurídico búlgaro pode ser punido até prisão perpétua. Contudo, o ordenamento constitucional português não permite tal pena de prisão perpétua e é um princípio estruturante do processo penal de que, após recurso de uma decisão condenatória movido exclusivamente pela defesa, a nova sentença que venha a ser proferida, pelo tribunal de recurso ou pela 1ª instância, não aplique pena mais grave do que a da decisão anterior. É o princípio da proibição da reformatio in pejus, incluído no art.º 409.º, n.º 1, do CPP que se pronuncia sobre os recursos, mas cujos fundamentos a jurisprudência faz estender a todo o processo penal.
XI - A Procuradora de Burgas fez saber, por ofício que remeteu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que esse princípio também é cumprido no processo penal búlgaro. Todavia, apesar de tal ter sido pedido, o Estado Búlgaro ainda não forneceu essa garantia formal.
XII – Assim, há que ordenar a entrega do cidadão búlgaro, para cumprimento do MDE emitido, com a correcção adequada quanto às sentenças condenatórias em causa, ficando a entrega sujeita às seguintes condições resolutivas:
1ª- As referidas decisões serão notificadas pessoalmente ao dito cidadão, sem demora na sequência da entrega e este será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;
2ª- A pena que nessa sequência eventualmente lhe venha a ser imposta não pode ser superior a “20 anos de privação da liberdade sob regime inicial estritamente rigoroso”.
AcSTJ de 10-11-2011, Proc. 763/11.8YRLSB.S1, Relator: Conselheiro Santos Carvalho
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