Devíamos ter só tribunais de primeira instância para os pobres e um Tribunal de Última Instância para pessoas de posses
1. Quero expressar a minha profunda gratidão a Carla Cardador, a juíza do Tribunal de Oeiras que mandou prender Isaltino Morais na quinta-feira passada.
A gratidão não resulta do facto de a magistrada ter proporcionado ao presidente da Câmara de Oeiras 24 horas que se espera tenham sido ricas de introspecção, mas sim do facto de ter ficado provado que não somos só nós, simples mortais sem formação jurídica, que não conseguimos perceber o que se passa nos meandros dos processos judiciais.
Confesso que a minha confusão a propósito da situação jurídica de Isaltino Morais já me fez sentir algum desconforto. Afinal o homem continuava a ser presumível ou já era oficialmente corrupto? A condenação do tribunal de primeira instância e a confirmação da Relação e a confirmação do Supremo eram a sério ou o Tribunal Constitucional ainda podia determinar o regresso à casa de partida? Apesar de todos os tribunais terem concluído que Isaltino era culpado e o terem condenado e apenas divergirem na pena, significava que podíamos assentar na sua culpa, como determina a lógica, ou a justiça e a lógica são incompatíveis? E, ponto fulcral, a sentença já tinha transitado em julgado, como se diz na pomposa gíria da justiça, ou não?
O facto de a juíza Carla Cardador, titular do processo, também ter sido induzida em erro - se houve erro - mostra que não é por sermos leigos que não percebemos a justiça. É porque a justiça portuguesa não faz sentido.
Mas, se, pelo contrário, se provar que a juíza afinal não cometeu nenhum erro, provar-se-á igualmente que a justiça portuguesa não faz mesmo sentido nenhum.
Seja qual for o resultado, perdemos nós.
2. Este incidente também nos deu a saber que o processo de Isaltino Morais tem dez mil páginas, que a juíza se tinha tornado a sua titular (assim como de muitos outros) há um mês, mas que as regras do jogo são que ela deve conhecer em pormenor o processo (e todos os outros sob a sua responsabilidade) antes de despachar seja o que for.
Qualquer pessoa de boa fé sabe que não é possível ler (atentamente, como deve ser lido um processo) dez mil páginas nalguns dias. E sabe-se que muitos juízes têm a seu cargo centenas de processos. Se o funcionamento dos tribunais assenta na presunção de que os juízes conseguem escrutinar milhares de páginas em meia-dúzia de horas, isso só por si explica a deficiente administração da justiça em Portugal. Que um juiz se disponha a decidir seja o que for sobre um processo de dez mil páginas que tenha tido dois dias para folhear suscita-me dois tipos de reacção: uma enorme admiração pelas suas qualidades intelectuais e um puro terror pelo seu atrevimento.
3. O processo de Isaltino Morais mostra-nos outra coisa fascinante: como é diferente a justiça-gourmet. Quando os meios não faltam, é possível ir saltando alegremente, de processo em processo, de recurso em recurso, de condenação em condenação, até à prescrição ou até à absolvição final.
Há quem seja condenado nos tribunais de primeira instância, mas só os pobres é que acatam as sentenças. Uma pessoa de qualidade nunca se fica. Recorre.
O que me leva a fazer uma proposta de poupança, certamente ao gosto do Governo e da troika: porque não acabamos pura e simplesmente com os recursos e mantemos apenas os tribunais de primeira instância, para os pobres, e um Tribunal de Última Instância, para personalidades do PSD e outras pessoas de posses? No fundo, seriam tribunais especializados.
Não é uma questão de privilégio, mas de eficiência. Os ricos, de qualquer maneira, vão recorrer, por isso o resultado é o mesmo. Como este Tribunal de Última Instância teria imensos processos e não teria tempo para tratar de todos, podiam sortear-se, logo à entrada, os 90 por cento que iriam prescrever, para não gastar dinheiros públicos.
O resultado seria o mesmo, mas seria mais barato. E mais honesto.
José Vítor Malheiros
Público, 4 de Outubro de 2011
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