Devemos estar orgulhosos pela forma civilizada como decorreu a eleição do novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça. O acto processou-se dignamente, com elevação e com uma excelente condução dos trabalhos pela mesa.
Esta eleição, a meu ver, representa uma viragem e o começo de um novo ciclo no tribunal de cúpula da organização judiciária portuguesa. Atrever-me-ia a dizer mais: representou um verdadeiro corte epistemológico na tradição seguida até aqui, para empregar uma expressão de Gaston Bachelard com um sentido um pouco transviado.
Pela primeira vez foi eleito presidente um juiz que acedeu ao STJ pela via do Ministério Público. Já houve presidentes no passado que tiveram o seu principal desempenho profissional na magistratura do Ministério Público, como, entre outros, Manso Preto e Pedro de Macedo. Porém, isso foi no tempo em que os quadros superiores do Ministério Público provinham da magistratura judicial, ou em que, tendo já ocorrido a separação de carreiras com a consequente autonomização do Ministério Público, com a Lei n.º 39/78, de 5 de Julho, certos magistrados dos escalões superiores desta magistratura continuaram ligados à magistratura judicial, nunca tendo feito a opção pelo Ministério Público.
Não assim com o presidente agora eleito, que, tendo feito tal opção numa fase ainda recuada da sua carreira, o que foi permitido pela citada Lei 39/78, ficou a pertencer aos quadros do Ministério Público e dentro desta magistratura fez toda a sua evolução profissional, até ao momento em que reuniu condições para concorrer a juiz-conselheiro do STJ.
Ora, a sua eleição para presidente nestas condições ocorreu pela primeira vez, o que assume um significado de relevo dentro da tradição do STJ, em que a maioria dos juízes é oriunda da magistratura judicial e fazia sentir o seu peso em vários actos institucionais do Tribunal, sobretudo na eleição para os cargos de chefia, facto que se tem vindo a diluir gradualmente, mas ainda tinha um bastião de resistência na eleição presidencial, sendo o presidente do STJ também presidente, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura – o órgão constitucional de gestão e disciplina dos juízes.
Esse bastião foi agora rompido com esta eleição, o que significa que a maioria dos seus juízes assimilou que há várias vias de acesso ao STJ e que todos eles são juízes conselheiros de pleno direito. E significa mais: que para presidente deve ser eleito aquele que em melhores condições está para desempenhar o cargo de uma forma digna e dignificante e que melhor possa contribuir para o prestígio e a credibilidade dos tribunais, através do exemplo modelar do STJ e do órgão máximo de gestão e disciplina dos juízes, independentemente da via por que se acedeu a juiz-conselheiro.
De forma que, com esta eleição, a maioria dos juízes do Supremo deu um sinal claro (pela expressividade dos votos, que resolveu a eleição logo à primeira volta) de rompimento com uma visão corporativa dentro da própria corporação dos juízes. E deu também um sinal claro de que a escolha deve recair, como recaiu, em quem sabe distinguir o essencial do acessório, tendo em vista a dignificação da justiça, que tem como destinatários os cidadãos, e não põe os olhos em falsas miragens que no fundo se traduzem em reivindicar para os juízes posições de maior destaque social ou mediático, mas não necessariamente de mais engrandecimento da função.
Publicado por Artur Costa (02:20)
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