Em democracia só entidades
independentes, com estatuto garantido constitucionalmente, devem dirigir as
investigações no âmbito da justiça
1. A ideia de que a democracia implica um caminho contínuo de
progresso, cujas mudanças permitem melhorar sempre o que de bom a sociedade já
alcançou, parece hoje uma noção em crise.
O que
recentemente sucedeu no Brasil - esse prodigioso país, em pleno momento de
afirmação mundial - confirma plenamente esta falácia.
Alguém
- com raro sentido de oportunidade política - lembrou-se de formular uma
“generosa” proposta de revisão constitucional para, alegadamente, reforçar a
independência do Ministério Público (MP).
Essa
proposta visa, na verdade, impedir apenas que o MP continue a dirigir as
investigações criminais, que, pela primeira vez, têm permitido à justiça
brasileira atingir estratos políticos, económicos e sociais que sempre se
julgaram imunes.
Conhecida
por PEC 37/2011, tal proposta vem causando, por isso, estupefacção entre a
comunidade jurídica mundial.
Esta
tem acompanhado, com admiração genuína, a actividade empenhada do MP daquele
país na defesa dos direitos de cidadania e, mais concretamente, no combate à
criminalidade económica e financeira, designadamente no âmbito do célebre
processo “mensalão”.
A
experiência ensina, em todo o caso, que são exactamente os sucessos obtidos
contra os privilégios da impunidade que costumam estar na origem destas
investidas.
Os
portugueses sabem bem disso.
2.
Mas, mesmo assim, será, ainda, admissível colocar em causa os poderes de investigação
do MP, uma entidade que - como no Brasil sucede - tem, exactamente, por missão
constitucional o exercício da acção penal?
Qualquer
que seja o modelo de justiça existente nos países democráticos, sempre se exige
que seja uma autoridade judicial, ou uma entidade constitucional independente
como o MP, que, processualmente, dirijam, controlem ou completem as
investigações policiais.
No
mundo, só três países consagram, actualmente, a tese contrária: a Indonésia, o
Quénia e o Uganda.
Cientes
do que pode suceder, a Procuradoria-Geral da República do Brasil e o MP Federal
lembraram-se, por isso, de convocar uma conferência de nível internacional para
analisar e discutir tão peregrina proposta.
3.
Aí, com o apoio da MEDEL, foi aprovado um importante documento - a Carta de
Brasília - que espelha nitidamente as contradições e os perigos que a provação
da referida PEC 37/2011 pode comportar.
Nele
se faz notar:
O
prejuízo que tal aprovação acarretaria para a salvaguarda do princípio da
igualdade dos cidadãos perante a lei e, assim, também, para a eficiência e
efectividade da justiça;
A
incongruência em que passaria a incorrer o estado brasileiro, que aprovou o
Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que prevê, precisamente, um MP
independente e com poderes investigatórios amplos;
A
dificuldade acrescida que o Brasil passaria a ter na cooperação judiciária
internacional, que se baseia no princípio do reconhecimento mútuo entre
entidades independentes e com poderes judiciários no campo da investigação.
4. O
Brasil é, todos sabemos, um país com brilhantes tradições jurídicas, órgãos
judiciais e um MP respeitados pelos seus cidadãos e pela comunidade jurídica e
judiciária mundial.
Admitir
que o Brasil possa vir a aderir ao pequeno grupo de países que, no mundo, aceitam
ainda a possibilidade de investigações criminais não judicializadas e dirigidas
apenas por órgãos - como as polícias - que dependem das orientações políticas
dos governos, só pode, assim, causar espanto e profunda preocupação
democrática.
Jurista
e presidente da MEDEL
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