por JOSÉ MANUEL PUREZA
Portugal precisa de um ajustamento estrutural da sua
elite económica. Vivem claramente acima das nossas possibilidades. Capturam o
Estado e fazem dele o alicerce da sua acumulação de riqueza, descapitalizando-o
para o exercício das funções que uma sociedade frágil e pobre exige. Servem de
intermediários da finança internacional e, como seus representantes em
Portugal, põem e desfazem governos à medida das necessidades de negócio de cada
momento. Zombam da lei e do interesse público. E, no fim, ainda têm o topete de
fazer para a sociedade que os alimenta a apologia da miséria.
Há continuidades e mudanças na agenda dessa elite. A proteção do
Estado é, há mais de um século, a sua principal continuidade: desde o monopólio
dos tabacos na viragem do século XIX para o século XX, até à siderurgia ou aos
petróleos durante o salazarismo e à eletricidade, às autoestradas ou à saúde no
nosso tempo, sempre a elite económica teve no Estado o seu mais fiel aliado.
Mas essa proteção não cai do céu. Ela é sim o resultado da tessitura fina de
redes de cumplicidade entre a esfera de decisão económica da elite e as
diferentes instâncias do poder político, desde os partidos aos media e às
instituições.
Que um banqueiro - membro de uma das famílias que ao longo de mais
de um século perdura no topo da economia nacional, resistindo a todas as
intempéries políticas e financeiras - tenha beneficiado de programas
governamentais de amnistia fiscal para regularizar a não declaração ao fisco de
8,6 milhões de euros é muito revelador da relação de cumplicidade entre o
Estado e as famílias da banca. O que impressiona neste caso é a duplicidade com
que o Estado trata as pessoas: uma dívida ao fisco de um qualquer cidadão
anónimo na ordem de umas centenas de euros determina invariavelmente sanções e
punições temíveis para a existência frágil da esmagadora maioria; já a dívida
de milhões de um banqueiro por infração da regra mais basilar que é a da
declaração de rendimento e de património é objeto de tratamento com deferência
e vénia, quem sabe se não mesmo com um agradecimento do Estado credor. O
banqueiro sabe que tem no Estado um amigo, o cidadão arrisca-se a ter nele um
agressor.
Que um outro banqueiro, cujo banco é detido em 99% pelo Estado,
diga publicamente que "não se chocaria" se o Estado nomeasse um
membro para a gestão do banco é igualmente revelador. A sobranceria com que a
elite se permite tratar o Estado, a redução deste a algo que se tolera (mesmo
que se corra à procura do seu auxílio ao primeiro obstáculo que surja à
tranquilidade da acumulação), evidencia como ela dá por assente que o Estado
não incomodará e se remeterá ao servil papel de atento, venerador e obrigado.
O desdém da elite pelo Estado é a expressão de um seu desdém mais
fundo pela sociedade no seu todo. Que ainda um outro banqueiro se dê o direito
de dizer, na mesmíssima sessão em que anunciou lucros do seu banco no valor de
250 milhões de euros - dos quais 160 resultantes de especulação sobre a dívida
soberana de Portugal - que se os sem-abrigo aguentam a sua condição nós todos
temos de aguentar as consequências da vertigem do empobrecimento mostra como a
elite dos negócios entrou em versão hardcore e como a sua confiança lhe fez
perder a noção dos limites do decoro.
Esta nata que impôs a vinda da troika para garantir o pagamento
por quem trabalha dos custos das suas irresponsabilidades especulativas e que
abençoa a nomeação para o Governo de quem calou o crime do BPN é aquilo que
mais precisa de ser refundado em Portugal.
Diário de
Notícias, 08-02-2013
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