terça-feira, 5 de março de 2013

O dever de reserva

Por António Cluny, publicado em 5 Mar 2013 - 03:00 | Actualizado há 14 horas 4 minutos
Campus de justiçaO dever de reserva tem de ser interpretado com novo rigor, revalorizando-se, mesmo que em termos diferentes, a uma sociedade comunicacional e de espectáculo como a actual
1. A questão do dever de reserva dos profissionais do foro tem estado ultimamente na ordem do dia.
O dever de reserva está ontológica e deontologicamente associado à legitimidade da intervenção de cada um dos protagonistas do enredo judicial.
Permitir aos profissionais do foro que questionem, fora da lide judicial, a estratégia e o andamento de um processo, permitir-lhes discutir externamente o sentido das decisões nele tomadas, põe em causa a legitimidade da justiça.
O dever de reserva significa, portanto, guardar para si - neste caso, para a função que se exerce - um domínio, uma competência, uma legitimidade, que, por tão exclusivas, têm, também elas, um espaço adequado onde podem ser exercidas: o foro e, nele, o processo.
Violar ou prescindir do dever de reserva significa, então, prescindir desse domínio restrito.
2. O poder - e portanto também o poder judicial - necessitou, sempre, de uma iconografia própria para ser compreendido.
Hoje, em razão de uma maior proximidade dos cidadãos ao seu exercício, a força das decisões judiciárias não pode basear-se, já e apenas, na pura auctoritas da sentença ou na potestas do juiz.
A soberania popular e a autoridade da lei - lei votada em parlamento e pelos seus representantes - ou, no exercício da justiça, o facto de esta ser exercida constitucionalmente em nome do povo, implicam que este queira e possa conhecer a razão de ser das decisões tomadas em seu nome.
A emergência da sociedade mediática e com ela a ampliação exponencial do espectáculo que constitui, e sempre constituiu, o exercício da justiça, fazem, todavia, ressaltar necessidades novas do ponto de vista da explicação, e por isso da legitimação da acção dos tribunais e das suas decisões.
Isso parece facilmente entendível por todos.
3. O que suscita dúvidas sérias é, por conseguinte, a possibilidade de o pronunciamento exterior sobre o processo e as suas decisões, feito justamente por quem internamente interveio na lide processual e contribuiu para a formulação das mesmas.
O profissional do foro que escolher intervir num palco distinto daquele em que tem legitimidade para actuar como tal arrisca deslegitimar o próprio palco - a justiça - e deslegitimar a sua específica função judiciária.
Tal escolha deslocaliza a lide, comportando, consequentemente, uma óbvia desvalorização da sede institucional onde o julgamento deve decorrer.
Ao assumir um protagonismo individual externo - despindo a beca ou a toga, que validam e integram a sua actuação num sistema específico - aquele que decidir, assim, intervir, rompe a cadeia e os preceitos relacionais de comportamento que edificam um código comum, justificando a profissão e, bem assim, a função processual que lhe está atribuída.
Rompidos, porém, os códigos de conduta específicos do foro e as vestes das profissões forenses, só a arbitrariedade reinará.
Não porque os códigos de conduta e códigos comunicacionais de outras profissões sejam piores, mas porque são diferentes, por se destinarem a outros fins.
As normas processuais e os comportamentos deontológicos dos que as devem cumprir (ou fazer cumprir) visam o alcance de uma verdade que não deve ser obtida a qualquer preço. Para a realização da justiça, elas têm, pois, tanto valor como as próprias normas substantivas que a definem.
O dever de reserva tem, por isso, de ser interpretado com novo rigor, revalorizando-se, mesmo que em termos diferentes, ainda que inevitavelmente adequados a uma sociedade comunicacional e de espectáculo como a actual.
Jurista e presidente da MEDEL

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