O dever de reserva tem de ser interpretado com novo rigor, revalorizando-se, mesmo que em termos diferentes, a uma sociedade comunicacional e de espectáculo como a actual
1. A questão do dever de reserva dos profissionais do foro tem
estado ultimamente na ordem do dia.
O dever de reserva
está ontológica e deontologicamente associado à legitimidade da intervenção de
cada um dos protagonistas do enredo judicial.
Permitir aos
profissionais do foro que questionem, fora da lide judicial, a estratégia e o
andamento de um processo, permitir-lhes discutir externamente o sentido das
decisões nele tomadas, põe em causa a legitimidade da justiça.
O dever de reserva
significa, portanto, guardar para si - neste caso, para a função que se exerce
- um domínio, uma competência, uma legitimidade, que, por tão exclusivas, têm,
também elas, um espaço adequado onde podem ser exercidas: o foro e, nele, o
processo.
Violar ou
prescindir do dever de reserva significa, então, prescindir desse domínio
restrito.
2. O poder - e
portanto também o poder judicial - necessitou, sempre, de uma iconografia
própria para ser compreendido.
Hoje, em razão de
uma maior proximidade dos cidadãos ao seu exercício, a força das decisões
judiciárias não pode basear-se, já e apenas, na pura auctoritas da sentença ou na potestas do juiz.
A soberania
popular e a autoridade da lei - lei votada em parlamento e pelos seus
representantes - ou, no exercício da justiça, o facto de esta ser exercida
constitucionalmente em nome do povo, implicam que este queira e possa conhecer
a razão de ser das decisões tomadas em seu nome.
A emergência da
sociedade mediática e com ela a ampliação exponencial do espectáculo que
constitui, e sempre constituiu, o exercício da justiça, fazem, todavia,
ressaltar necessidades novas do ponto de vista da explicação, e por isso da
legitimação da acção dos tribunais e das suas decisões.
Isso parece
facilmente entendível por todos.
3. O que suscita
dúvidas sérias é, por conseguinte, a possibilidade de o pronunciamento exterior
sobre o processo e as suas decisões, feito justamente por quem internamente
interveio na lide processual e contribuiu para a formulação das mesmas.
O profissional do
foro que escolher intervir num palco distinto daquele em que tem legitimidade
para actuar como tal arrisca deslegitimar o próprio palco - a justiça - e
deslegitimar a sua específica função judiciária.
Tal escolha
deslocaliza a lide, comportando, consequentemente, uma óbvia desvalorização da
sede institucional onde o julgamento deve decorrer.
Ao assumir um protagonismo
individual externo - despindo a beca ou a toga, que validam e integram a sua
actuação num sistema específico - aquele que decidir, assim, intervir, rompe a
cadeia e os preceitos relacionais de comportamento que edificam um código
comum, justificando a profissão e, bem assim, a função processual que lhe está
atribuída.
Rompidos, porém,
os códigos de conduta específicos do foro e as vestes das profissões forenses,
só a arbitrariedade reinará.
Não porque os
códigos de conduta e códigos comunicacionais de outras profissões sejam piores,
mas porque são diferentes, por se destinarem a outros fins.
As normas
processuais e os comportamentos deontológicos dos que as devem cumprir (ou
fazer cumprir) visam o alcance de uma verdade que não deve ser obtida a qualquer
preço. Para a realização da justiça, elas têm, pois, tanto valor como as
próprias normas substantivas que a definem.
O dever de reserva
tem, por isso, de ser interpretado com novo rigor, revalorizando-se, mesmo que
em termos diferentes, ainda que inevitavelmente adequados a uma sociedade
comunicacional e de espectáculo como a actual.
Jurista
e presidente da MEDEL
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