quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Um julgamento no espaço público


O processo Casa Pia originou o maior fenómeno de informação, contrainformação e desinformação de que há memória na comunicação social portuguesa desde o 25 de Abril de 1974.
Após a notícia da jornalista Felícia Cabrita, no Expresso, a 23 de novembro de 2002, os órgãos de comunicação social colocaram em campo os seus jornalistas mais especializados em assuntos de justiça. Todos queriam a manchete no dia seguinte com pressões constantes por parte das chefias. A investigação, muitas vezes, corria a par entre jornalistas e polícias, seguindo as pistas investigatórias uns dos outros, com os primeiros, por vezes, à frente dos segundos. Mas as detenções em direto, como foi o caso de Paulo Pedroso, mostraram que todos corriam no mesmo sentido. Tudo a uma velocidade estonteante. Depois, o modelo comunicacional da Polícia Judiciária e do Ministério Público não estava preparado para um processo desta dimensão. Então, o caos gerou-se. Uns órgãos de comunicação social (OCS) eram pró-vítimas, outros pró-arguidos, e outros baralhavam as informações de uns e de outros e apresentavam-nas como suas. As fontes de informação, por seu lado, colocavam-se do lado dos OCS que melhor serviam os seus interesses. Dez anos depois, o debate impõe-se: estaria a comunicação social portuguesa minimamente preparada para um caso com tantos ingredientes excecionais?
"Não creio que os órgãos de comunicação social estivessem preparados, mas também não acredito que seja 'defeito' próprio da comunicação social portuguesa. Estamos a falar de um caso que teve um impacto mediático, social e até político gigantesco, e as 'defesas' do jornalismo, neste tipo de situações, não costumam ser muito eficientes", afirma Azeredo Lopes. O ex-presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) considera mesmo que os jornalistas saem do processo "chamuscados", devido a alguns comportamentos de "vale tudo". "Perdeu-se a cabeça em situações em que se impunha o rigor jornalístico, caiu-se na embriaguez do 'poder' de julgar, mesmo que à custa da lesão grave dos direitos de algumas pessoas e mesmo que em detrimento de normas fundamentais do jornalismo, onde a presunção de inocência aparece em lugar de destaque."
Também Estrela Serrano, provedora do leitor do DN durante grande parte do processo, é da opinião de que o caso tinha demasiados ingredientes para os quais ninguém estava preparado. "Por um lado, o tema – a pedofilia; por outro, uma instituição de referência na sociedade; as personalidades envolvidas pertenciam a meios com grande relevância mediática. Eram ingredientes explosivos e ideais para alimentar a agenda mediática durante muito tempo, como veio a acontecer. Lembro-me de como os media, sobretudo as televisões, enchiam os ecrãs de testemunhos, citando nomes de pessoas suspeitas de envolvimento, exibindo filmes e fotografias com crianças, em situação de poderem ser identificadas, numa orgia incontrolável em que cada um queria ultrapassar o outro. É certo que aqui e ali se ouviam vozes de jornalistas tentando chamar à razão o desvario informativo em que se caiu."
Para Estrela Serrano os principais erros residiram "num uso irresponsável da liberdade de imprensa". E justifica: "Houve falta de escrutínio da informação transmitida, no uso e abuso de fontes anónimas ou não identificadas, até de informação baseada em rumores; na devassa da vida privada das pessoas dadas como culpadas; na confusão entre o papel do jornalista e o do advogado, polícia ou juiz."
E foram estes erros que levaram a ex-provedora dos leitores a intervir, como a própria recorda: "Recebi várias queixas e também senti necessidade de ser proativa na abordagem de situações que ia acompanhando mesmo para além do Diário de Notícias. Uma das situações mais polémicas do ponto de vista jornalístico foi uma capa do DN em que se afirmava existirem vídeos e fotografias que incriminavam Carlos Cruz, que foi seguida de um comunicado da PGR afirmando, sem desmentir diretamente o DN, que havia falta de fundamento em muito do que a comunicação social estava a publicar, permitindo estabelecer uma relação entre a notícia e o comunicado. Era uma notícia sem fontes em que a palavra do diretor [o saudoso Mário Bettencourt Resendes] era a única garantia da credibilidade dessa informação que, contudo, veio a ser desmentida por uma fonte da PJ."
Mas se erros foram cometidos, também é um facto que a comunicação social desempenhou um papel decisivo de denúncia, como salienta Alfredo Maia, presidente do Sindicato dos Jornalistas. "Recuperou um assunto que muita gente conhecia mas que ninguém tinha enfrentado de forma decidida, decisiva e consequente. Nesse sentido, citando a antiga provedora da Casa Pia Catalina Pestana, a comunicação social foi uma 'heroína'."
A forte concorrência na luta pelas audiências, a descrença da sociedade no funcionamento das instituições (do poder político ao poder judicial) são fatores que ajudam a compreender o comportamento dos OCS. "A opinião pública depositava uma grande expectativa no poder de escrutínio dos media, face à falência da Justiça. E os media, na ânsia de responder-lhe, animados pelos impulsos da concorrência e sentindo-se legitimados por essa expectativa numa espécie de demanda justicialista, não resistiram à tentação de deslocar para o circo mediático a arena processual e penal sem anteciparem e muito menos medirem o dramático cortejo de erros que viriam a engrossar", observa o presidente do Sindicato dos Jornalistas, para quem o principal erro foi a "tentação de explicar e resolver rapidamente problemas adiados ao longo de décadas". E dez anos depois, seria diferente o comportamento dos OCS? Aqui as opiniões dividem-se e Azeredo Lopes é o mais cético. "Não creio que mudasse. Bem pelo contrário. A falta de meios gritante da maior parte dos órgãos de comunicação social, a crise económica, a pressão enorme sobre o jornalista para que seja eficiente e se antecipe aos rivais, a luta pela sobrevivência, levam- -me a crer que, se ocorresse nos nossos dias um caso desta envergadura, valeria tudo. Mas tudo mesmo", comenta Azeredo Lopes. Já Alfredo Maia e Estrela Serrano consideram que existiu um crescimento dos OCS na última década e acreditam que os mesmos erros não seriam cometidos. "Tenho fundada esperança de que seria diferente, para melhor e mais responsável, pois creio que, apesar dos erros que possamos continuar a cometer, aprendemos todos pelo menos.um pouco. Resta saber se o contexto na sociedade, no sector e nas redações seria propício, nesse cenário, à adoção prática de regras mais exigentes", afirma o presidente do Sindicato dos Jornalistas.
Estrela Serrano chama a atenção para o facto de tal crescimento não ter sido exclusivo dos jornalistas. "As fontes sofisticaram o seu relacionamento com os jornalistas e estes também encontraram maneiras de estabelecer relações de poder e de troca com as fontes ligadas ao poder judicial. As falhas éticas e deontológicas de um lado e de outro já não são tão grosseiras como eram há dez anos, embora permaneçam", afirma.
Outro ponto sensível em que este processo tocou foi a posição que alguns jornalistas assumiram de defesa de uma das partes. Uma questão que Azeredo Lopes "desculpabiliza" face ao assunto em si e às pessoas envolvidas: "A imparcialidade absoluta deve ser muitíssimo difícil num caso desta natureza, até porque neste país não devia haver gato-sapato que não tivesse opinião convicta sobre o assunto."
Sílvia Freches
Diário de Notícias, 28-02-2013

Sem comentários: