Público - 09/02/2013
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1.
A par das liberdades culturais (arts. 37.º, 38.º, 42.º e 43.º) e dos direitos
de acesso aos bens de cultura (arts. 73.º e segs.), pode falar-se, na nossa
Constituição, de direitos à identidade cultural, desdobrados em três
categorias:
- o direito à
identidade cultural como
componente ou expressão do direito à identidade pessoal ou, mesmo, do direito
ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º, n.º 1), pois a pertença a um
povo com uma identidade cultural comum [art. 78º, n.º 2, alíneac)] faz
parte também da individualidade de cada pessoa;
- o direito de uso da língua, sabendo-se como a língua materna,
por seu turno, é o primeiro ou um dos primeiros elementos distintivos da
identidade cultural;
- o direito de defender, mesmo em tribunal, o património cultural
[art. 52.º, n.º 3, alínea d)].
2. O relevo particularíssimo
da língua resulta não só de o português ser declarado língua oficial (art.
11.º, n.º 3), mas também de constituir uma das "tarefas fundamentais"
do Estado "assegurar o ensino e a valorização permanentes, defender o uso
e promover a difusão internacional da língua portuguesa [art. 9º, alínea f)].
E a isso acrescem os "laços privilegiados de amizade e
cooperação com os países de língua portuguesa" [arts. 7.º, n.º 4 e 78.º,
n.º 2, alínea d)] e a
equiparação, em certos termos, dos direitos dos seus cidadãos aos direitos dos
cidadãos portugueses (art. 15.º, nº 3), bem como o ensino da língua aos filhos
de emigrantes [art. 74.º, n.º 2, alínea i)].
3. Serão, porém, cumpridas as
obrigações constitucionais e respeitado o direito à identidade linguística dos
cidadãos portugueses? A pergunta, infelizmente, justifica-se porque:
- Se tem admitido o registo de nascimento com nomes próprios não
portugueses;
- Se espalham denominações de sociedades e cartazes publicitários
em língua estrangeira;
- Se admitem primeiras denominações de escolas universitárias em
língua estrangeira (até contra o disposto no art. 10.º, n.º 1 do Regime Geral
das Instituições de Ensino Superior);
- Se impõe outra língua a alunos portugueses, em violação do seu
direito fundamental à língua, em aulas ministradas por professores portugueses
em escolas universitárias portuguesas (coisa diferente, claro está, será o caso
de aulas dadas por professores estrangeiros);
- Muitas vezes, não se incentivam os alunos do programa Erasmus
a aprender português, quando este programa, pelo contrário, visa a
interculturalidade e não a uniformização linguística;
- Se observa o uso em público de línguas estrangeiras por
titulares de órgãos de soberania nessa qualidade;
- Os sucessivos memorandos de entendimento com o FMI, a Comissão
Europeia e o Banco Central Europeu não têm tradução oficial e não têm sido
publicados no Diário da
República;
- Se verifica a degradação do português como língua de trabalho
na União Europeia.
Apenas um provincianismo antipatriótico e uma prática de
subserviência pode explicar estes e outros factos, esquecendo-se que a língua é
quase o único domínio de independência que hoje nos resta, que é língua oficial
de mais sete Estados e que é falada por mais de 200 milhões de pessoas em todos
os continentes.
4. O Acordo Ortográfico tem
sido fortemente criticado por muitos especialistas e não especialistas da
língua como atentatório do português.
Não vou discutir o assunto, até porque não sou especialista,
embora não esconda a minha preferência por ele na medida em que possa
contribuir para a afirmação internacional da língua portuguesa (que é uma só,
apesar das variantes portuguesa, brasileira, africanas e asiáticas - não
estamos numa situação semelhante à do latim aquando das invasões bárbaras).
Mas gostaria que aqueles que estão tão preocupados com a nova
ortografia oficial, boa ou má, se manifestassem ainda mais inquietos com os
problemas que acabo de lembrar.
Professor da Universidade de
Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa
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