Público
- 26/02/2013 - 00:00
Em
parcas palavras, a opção pelo "de" ou pelo "da" nunca será
apta a resolver a questão em debate
7.
Razão de uma retoma do tema
Embora estivesse ainda longe de terminar o argumentário sobre a
limitação de mandatos autárquicos, gostava de interromper, por algumas semanas,
o tratamento do tema. Não tanto com o fito de dar o merecido descanso aos
leitores ou até ao autor, mas antes com o ensejo de pôr os olhos na imensidão
de acontecimentos marcantes que estão a pautar a vida e o pulsar da nossa
sociedade. Basta pensar, com efeito, na renúncia papal, nas eleições italianas,
nas perspectivas financeiras e orçamentais da União Europeia, na actual
situação política búlgara, na descida de rating do Reino Unido, na saga dos protestos
cantados contra o Governo português ou nos últimos desenvolvimentos da nossa
situação económica e financeira, para ver que não mingua assunto nem escasseia
tema para estas ou outras crónicas. Mas, depois da polémica do "de"
ou "da", que tanta tinta, tanta ironia, tanto escárnio e tanta indignação
fez e faz correr, é imperativo deixar essa interrupção para a semana que vem.
Hoje, e por isso, tratamos ainda da limitação de mandatos.
8. O argumento do "de" ou
"da"
Como facilmente se verá por estas crónicas e por outras
intervenções públicas, nunca atribuí relevância ao emprego da locução
"de" ou da locução "da" no debate público em curso sobre a
interpretação da lei da limitação dos mandatos. Pareceu-me sempre um argumento
frágil, frustre, sem qualquer capacidade ou aptidão para fundamentar a
descoberta da solução jurídica resultante da lei. Nunca me pareceu um
argumento; na verdade - como abaixo procurarei demonstrar -, não passa de um
"argumentinho". De resto, e como se viu nos últimos dias, nisso
acordam defensores das duas correntes interpretativas em compita.
Foi, pois, com um assomo de espanto que vi jornais de referência
anunciarem, com honras de manchete e dignidades de editorial, que a virtual
substituição de um "de" por um "da" alterava a
interpretação da lei. Na realidade, e independentemente de qualquer raciocínio
jurídico mais ou menos complexo, essa estranha conclusão não resiste a uma
pergunta de senso comum. Passará pela cabeça de alguém que a lei, querendo dar
resposta à questão da limitação de mandatos, o tivesse feito de um modo
"cifrado" e quase "clandestino", colocando um
"da" no lugar de um "de"? "Da" que, depois,
seria, em sede de revisão de provas e de acordo com as regras da legística,
revertido para o actual "de" (no que também não faltou quem
vislumbrasse uma premeditação maquiavélica...).
Se a lei quisesse, de um modo cabal, dar resposta a essa
questão, não se refugiaria decerto no concreto uso da preposição "de"
ou da sua contracção com o artigo definido "da"... Quem ouvir as
declarações ou ler os textos produzidos na sequência da notícia da troca do já
célebre "da" pelo "de" fica com a sensação de que o emprego
de uma ou de outra locução foi completamente intencional e resolveria de per se a controvérsia que se instalou... Nada
de mais enganoso.
9. Análise hermenêutica do argumento do
"de" ou "da"
Se a pergunta do senso comum não for suficiente para convencer
os entusiastas do argumento do "da" ou "de", ao menos que
se deixem convencer pelas regras de interpretação da dogmática jurídica. A
poder ver-se - que não pode - qualquer indício na escolha da concreta locução,
ele nunca deixará de ser um mero indício literal (sempre susceptível de ser
corrigido pelo "espírito" da lei). Acresce que, numa matéria em que
estão em causa valores materiais tão importantes como o princípio republicano,
a liberdade de eleger e ser eleito ou a liberdade e igualdade de acesso aos
cargos políticos (de todos e não apenas dos já anteriormente eleitos), a
solução jurídica não pode depender da utilização ou não utilização de um
simples artigo definido. E se, já em terceiro lugar, se consultarem os
múltiplos diplomas sobre as autarquias locais e os seus órgãos, verificar-se-á
que a expressão "presidente da junta" ou "presidente da
câmara" aparece repetida ad
nauseam, sem que queira, em nenhum desses casos, significar uma junta ou
uma câmara em concreto. Veja-se, por exemplo, a conhecida Lei n.º 169/99, de 18
de Setembro (entretanto profundamente modificada, mas servindo-se sempre da
expressão). Diga-se, aliás, que, mesmo que nenhum destes argumentos procedesse,
a enunciação linguística "presidente da câmara" ou "da
junta" poderia sempre ser interpretada como simplesmente identificadora do
exacto órgão em que valia a proibição (e não já propriamente de uma concreta
"autarquia"). Ou seja, a menção à "câmara" com artigo
definido far-se-á por comparação a outro órgão da autarquia, a saber a
assembleia municipal. A limitação abrangeria os presidentes de um dos órgãos da
autarquia (a câmara), mas não os presidentes do outro (a assembleia). E, por conseguinte,
dizia-se o presidente "da câmara" por contraposição ao presidente
"da assembleia"... Em parcas palavras, a opção pelo "de" ou
pelo "da" nunca será apta a resolver a questão em debate.
10. Uma reflexão institucional
A querela do "da" e "de" suscita ainda uma
reflexão de natureza institucional (que poucos fizeram) e que diz respeito ao
modo como o Presidente da República decidiu tratar esta questão. A relevância
do tema para a nossa democracia e para o decurso regular do acto eleitoral
autárquico justificaria uma exortação ao Parlamento para que resolvesse a
questão em sede legislativa. Ao descobrir a dita incongruência entre a versão
promulgada e a versão publicada, o Presidente dispunha de um motivo de ouro
para enviar uma mensagem à Assembleia e - não querendo tomar uma posição
substantiva - exigir, ao menos, uma aclaração política, confrontando os
deputados com as suas responsabilidades. Estranhamente, optou por um
procedimento invulgar, enviando uma carta à presidente da Assembleia com um
conteúdo notarial de pura certificação. Estou em crer que a democracia pedia
mais. E vai pedir mais.
Eurodeputado (PSD). Escreve
à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu
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