quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Dados dos tribunais nas mãos de privados


Amadeu Araújo

A gestão dos servidores informáticos dos tribunais, que contém informação processual e em sigilo, vai ser entregue a privados. A decisão motivou já a demissão de alguns dos elementos da equipa que gere a plataforma informática das secretarias judiciais e dos magistrados, que foram convidados a dar formação a uma empresa privada.

A maioria destes elementos, sobretudo oficiais de justiça que estavam em comissão de serviço, apresentou a demissão. A decisão de entregar a empresas privadas a informática do Ministério da justiça consta de um estudo do Governo que defende que as bases de dados, de toda administração pública, sejam centralizadas e guardadas por uma entidade privada, numa nuvem tecnológica.

Entre essas bases de dados constam as plataformas dos tribunais que permitem o tratamento informático dos processos judiciais em todas as suas fases, desde a petição inicial até ao arquivo. Mas a hipótese do estudo passou a realidade.

A entrada dos privados na gestão das bases de dados dos tribunais foi confirmada pelos oficiais de justiça que estão em comissão de serviço na equipa que gere o sistema habilus e citius. Ao que 'O Crime' apurou estes funcionários; que transitaram da Direcção-Geral da Administração da Justiça, onde, integrados no sector informático, haviam participado na criação do Citius, o percussor da informatização dos tribunais; foram convidados pelo IGFEJ (Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça) a dar formação aos elementos da empresa privada que vai gerir o sistema informático dos tribunais.

Estes elementos, que dependem do IGFEJ e têm estatuto de funcionários públicos estando por isso obrigados ao segredo, recusaram o convite mas assumiram o compromisso de se manterem em funções até 1 de março deste ano. Mas no primeiro dia de fevereiro os funcionários foram notificados da cessação imediata da comissão de serviço e receberam indicações para se apresentarem na Direcção-Geral da Administração da Justiça, que tutela os oficiais de justiça em pleno exercício de funções nos tribunais.

E de seguida foram remetidos para os tribunais onde estavam colocados. Logo nessa sexta-feira surgiram os primeiros problemas informáticos, detetados ainda por esses elementos, sem que os mesmos pudessem intervir e sem que lhes fosse dado conhecimento de quem passou a gerir os problemas informáticos que ocorrem diariamente nos tribunais (ver caixa).

Já anteriormente esta equipa de oficiais de justiça foi impedida de desenvolver uma nova aplicação piloto para o sistema informático dos tribunais, onde são tratados os processos judiciais.

Foi há 3 anos quando o Ministério da Justiça pagou um milhão de euros a uma empresa privada para tomar mais eficiente e seguro o sistema informático utilizado pelos juízes na gestão dos processos.

Posteriormente seguiu-se uma auditoria a toda a informática dos tribunais e constatouse que existe a possibilidade de aceder, alterar ou remover gravações de audiências em tribunais sem controlo de acesso. Também qualquer utilizador no interior da rede da justiça pode alterar ficheiros de forma maliciosa ou subverter dados no envio de peças processuais na aplicação utilizada pelos advogados.

O conhecimento da entrada de privados nas bases de dados dos tribunais confirma a intenção do governo de entregar a gestão de dados sensíveis a empresas. Em novembro o governo fez saber que estava a desenvolver um estudo, no qual admitia que bases de dados com informações classificadas pudessem ser centralizadas e guardadas por uma entidade privada. A intenção seria reduzir despesas num plano gizado pelo Grupo de Projecto para as Tecnologias de Informação e Comunicação, tutelado pelo ministro Miguel Relvas, que tem a responsabilidade da gestão da rede informática do Governo.

Na altura a decisão mereceu críticas da Comissão Nacional de Protecção de Dados CNPD e dos partidos da oposição. O PCP entregou mesmo um requerimento no Parlamento onde alertou para o risco de estas bases de dados ficarem acessíveis a empresas privadas que "não dão garantias de proteger informação sensível".

Duvidas que levam oficiais de justiça, procuradores e juízes a confiarem pouco na informática dos tribunais. "Algo que é criado por alguém está na disponibilidade do seu criador". E poderá estar também acessível a todos aqueles que sabem como funciona o sistema.

'O Crime' pediu, sem sucesso, esclarecimentos ao Ministério da Justiça.

Sucedem-se os problemas na informática dos tribunais

"O sistema informático está diariamente bloqueado entre as 9 e as 10 horas. É de ficar com os cabelos em pé". O desabafo é de um funcionário do Tribunal de Viseu mas podia ser de outro qualquer tribunal. Os problemas sucedem-se e os atrasos nos processos também.

Os mais de 300 tribunais existentes no país estão ligados, por conectores de fibra óptica, a servidores colocados na região da Grande Lisboa que permitem aceder a toda a tramitação processual a partir de vários nós de comunicações. "Um sistema caduco, cheio de fragilidades, dificuldades e constrangimentos", desabafam vários oficiais de justiça e funcionários das conservatórias e notariados. Julgamentos adiados, impossibilidade de lavrar despachos, ou dar andamento aos processos são situações habituais nos tribunais quando o acesso ao sistema informático não está disponível.

"A gravação das audiências é digital, o que exige o funcionamento do sistema informático; os certificados do registo criminal, essenciais para a escolha e determinação da medida concreta da pena, são transmitidos aos tribunais por via electrónica", explicam os operadores judiciários que lembram que o problema não é dos programas mas "dos servidores ultrapassados e computadores obsoletos".

As dificuldades na informática perturbam ainda a Polícia Judiciária, os estabelecimentos prisionais e as delegações do Instituto de Reinserção Social porque "todos os processos estão informatizados e é preciso lançar diariamente informações".

Problemas que antes se resolviam "com os funcionários do Ministério da Justiça e que agora terão que ser resolvidos com empresas privadas de programação que não ganham dinheiro com a elaboração do programa mas com a manutenção". É que, referem vários oficiais de justiça, "até aqui havia uma estrutura de suporte capaz de resolver os problemas mas quando recorremos a privados, que desenvolvem os programas, vamos ter problemas porque é fácil conceber uma aplicação que de tempos a tempos, porque foi programado para isso, avaria e só pode ser reparada pela empresa que o concebeu. O negócio dos privados está aí".
O Crime, 07-02-2013

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