O Julgamento, Narrativa Crítica da Justiça
de Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio
Notas
de Leitura 2:
E continua socorrendo-se de uma
alegoria que parte da célebre frase ainda
há juízes em Berlim1, expressão de
confiança na independência do poder judiciário frente aos interesses dos
poderosos, em especial do poder político, mas que logo inverte, adiantando um outro dos termos de que parte: os desafios
que a crise da justiça coloca aos magistrados e a todos nós.
Essa alegoria, com que começa o
livro, inverte a história do moleiro de Sans-Souci, no sentido de que para se poder continuar a
afirmar que ainda há juízes em Berlim é absolutamente essencial que os próprios
juízes se adaptem ao que se lhes pede nos tempos modernos.
Dizendo que os juízes iam a
caminho de Berlim para decidirem, mas a certa altura o comboio parou e eles ao
olharem para fora verificaram que o comboio já estava parado há muito tempo e
que a via estava desactivada, pretendeu-se significar que tem de se manter viva
a alegoria de que ainda há juízes vivos em Berlim o que é muito importante para
que o direito aplicado nos tribunais se possa opor à arbitrariedade, do poder
político, naquele caso representado por Frederico II da Prússia, mas é
essencial também que se tenha a consciência de que para se ser juiz em
democracia nos tempos modernos é absolutamente essencial que os próprios
tribunais se adaptem às contingências do tempo, àquilo que foi a evolução
histórica e de que hoje, entre o poder judicial e o poder político, ao
contrário de que então acontecia em que a separação de poderes era rígida e
nítida e era um valor essencial, tem de se aproximar porventura mais, porque os
tempos são muito mais de cooperação e co-responsabilização, e muito menos de
separação e autonomia. Isto sem por em causa a independência dos tribunais
evidentemente, nem a separação de poderes, mas sim a dimensão burocrática com
que essas matérias são tratadas que deve ser claramente substituída por uma
dimensão mais democrática.
Daí que, na alegoria, os juízes
estejam parados na linha desactivada enquanto, noutro comboio, os “últimos
moleiros” chegavam a Berlim.
Mas esta alegoria não pretende
negar a credibilidade dos juízes. O que o autor pretendeu dizer – se bem o
entendemos – é que a alegoria nos dá uma marca negativa da política, do
arbítrio do político que é controlado necessariamente por tribunais
independentes que, no fundo, representariam o que hoje chamamos o estado de
direito. Era assim e assim tem de continuar, pois em nenhum Estado de direito se
pode conceber o modelo de Justiça em que não sejam os tribunais a controlar o
modo como o político exerce as suas funções desde que ponham em causa direitos
legislados ou direitos do cidadão.
Mas pretendeu – como cremos
resultar claramente da obra – afirmar que é essencial a compreensão de que, num
mundo muito mais complexo, onde a diversidade ocupa hoje o espaço onde a norma
ocupava sozinha a referência de padrão, é essencial a cooperação entre aquilo
que é o poder político e o poder judicial.
Daí que alerte para o perigo da
diabolização de um daqueles poderes que apenas encontra a sua própria
fidelização aos valores na afirmação da referência ética e moral do outro.
E que, neste mundo aberto a
novas reflexões, nos venha dizer que, se com Radbruch se partia da justiça para
o direito, do direito para a Lei e da Lei para o sistema e para os cidadãos,
hoje temos de partir dos direitos legítimos dos cidadãos para o sistema, daí
para a lei e daí para uma ideia de justiça. Doutra forma nunca mais se conseguirá
criar uma verdadeira comunicação entre os vários elos que estão envolvidos
neste processo global, no processo político de regime democrático, de estado de
direito e da importância a conferir aos tribunais, num regime dessa natureza.
Enfatizando as acrescidas
exigências dos tempos modernos aos tribunais, sustenta que se o século XIX terá
sido o tempo dos parlamentos, o século XX terá sido o tempo dos governos, dos
executivos, o século XXI vai ser o tempo dos tribunais.
Sem que isso signifique – na
sua leitura – a adesão a um activismo judiciário como alguma coisa que se
afirma contra o político e contra o poder político, mas sim que os tribunais
podem vir a ter um poder importante se se caminhar para a afirmação de uma
função reguladora do Estado, e de uma função reguladora de um mundo de tal
forma complexo e de tal forma marcado por conflitos de poderes que estão
exteriores já à própria organização do Estado, que o próprio poder político
precisará de tribunais fortes para que eles garantam a eficácia da sua
regulação.
Esse poder conferido aos
tribunais não seria um poder originário em que os tribunais passavam a ter em mãos
um poder político, mas um poder que, sendo originariamente político, precisa da
decisão dos tribunais para garantir a eficácia do exercício do seu próprio
poder, nomeadamente do seu poder regulador2 3.
Fala igualmente da mudança
exterior ao mundo judiciário, que tem mantido por dentro a ideia de que o mesmo
se ergue e desenvolve desligado da realidade exterior, inicialmente levando a que
o magistrado encaixasse, antes do 25 de Abril, numa determinada forma de
aplicar o direito e de defender a independência dos tribunais como se criasse
uma cidadela dentro da qual podia no fundo esgrimir a sua independência e em
que a independência dos tribunais não era outra coisa senão a aplicação da lei4.
E propõe outro modelo, não de
procura no juiz de uma figura estereotipada de pessoa, mas da exigência de uma
profunda qualidade no exercício da função e na criação de mecanismos de
avaliação e de controlo dessa mesma qualidade; na transferência da confiança
depositada na pessoa do juiz, para a confiança nas instituições que garantem
que a acção do juiz é uma acção correspondente àquilo que a lei lhe pede e que
a sociedade em geral exige como representante de um povo em nome de quem julga.
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1 No conto “O moleiro de Sans-Souci“, François
Andrieux (1759-1833) narra a história de um pequeno moleiro que, ameaçado de ter a sua propriedade tomada pelo
rei Frederico II, da Prússia, para permitir a construção de jardins que
melhorassem a vista do palácio real, responde ao soberano: “Tomar o meu
moinho? Sim, se não tivéssemos juízes em Berlim“, exprimindo a ideia de que
o poder dos governantes não é absoluto mas sim limitado pelos direitos dos
cidadãos, cabendo aos juízes reconhecer e impor tais limites.
2 O Autor refere-se à regulação dos mercados e a
um conjunto de actividades hoje da sociedade civil que chamaram a si muitos dos
poderes alguns mesmo poderes públicos, marcando esta complexidade e esta
diversidade dos tempos modernos mas que exigem evidentemente regulação e que
exigem instâncias credíveis que sejam capazes de serem garantes da eficácia
dessa regulação e essas são necessariamente os tribunais.
3 Por outro lado, da chamada anterior à intervenção
dos tribunais nas situações excepcionais de violação da lei, ter-se-á passado
para uma maior violação da lei com a ocorrência de muitas situações que sendo
tradicionalmente relevantes para o tribunal, hoje se configuram mais como situações
sociais, isto é uma série de violações ou não acatamento da lei que ganharam
uma dimensão tal que aí a intervenção releva mais da necessidade de resolver o
problema social que está subjacente do que aplicar a lei. E quando os tribunais
são chamados a intervir eles não tem instrumentos para poder resolver aquelas
situações enquanto problemas sociais.
4 Portanto a aplicação da lei fria formal, abstracta
e aplicada por pessoas que tinham um estatuto moral um estatuto ético que era
de uma maneira geral inexpugnável.
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