23/11/2012
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A liberdade de
expressão não é, seguramente, um direito muito valorizado nos nossos tribunais.
Pode mesmo dizer-se que é uma liberdade mal-amada por uma parte substancial da
magistratura portuguesa.
As razões para esta
realidade serão muito variadas e não correspondem à clássica divisão ideológica
entre esquerda e direita. Talvez seja mais apropriado falar de uma lógica
conservadora, defensora do respeito pela autoridade e pouco atenta à liberdade
individual face aos diversos poderes existentes na vida em sociedade e de uma
lógica mais liberal, aberta à crítica e ao conflito e que valoriza o confronto
público de ideias e opiniões mesmo que contaminado por erros.
No dia 28 de Julho
de 2004, deu entrada no Ministério da Saúde uma carta assinada por José Moreira
Bargão e Jacinto Domingos Correia em que estes afirmavam que um auxiliar de
apoio e vigilância numa extensão de saúde do Centro de Saúde de Idanha-a-Nova só
trabalhava um dia e meio por semana mas recebia o salário mensal como se
trabalhasse cinco dias por semana. Mais referiam que se constatava que "o
referido funcionário dominado pelos vícios e hábitos instalados, traduzidos na
cultura de favor e dependência das pessoas simples e pouco esclarecidas",
utilizava "práticas pouco consentâneas com a ética profissional, no seu
relacionamento com os utentes" e "métodos de influência" dos
quais tirava partido das formas que mais lhe convinha. Pediam os subscritores
que fosse posto termo "a tão degradante e chocante situação de
privilégio".
Na sequência do
recebimento desta carta, foi aberto um processo de averiguações, seguido de
processo disciplinar quanto ao não cumprimento dos horários por parte do
referido auxiliar bem como outras irregularidade e ilegalidades; no final, o
processo disciplinar veio a ser arquivado, sem prejuízo de se terem constatado
irregularidades como a não cobrança da taxa moderadora em alguns casos.
Certo é que o
funcionário visado se considerou ofendido com o teor da carta e se queixou em
tribunal contra os subscritores da mesma, conseguindo que fossem condenados
pelo crime de difamação nas penas de 1800 euros e 960 euros de multa cada um,
bem como a indemnizá-lo na quantia de 1600 euros.
O tribunal
considerou que com a carta em causa os subscritores da mesma "pretendiam
defender os interesses" da população servida pela extensão de saúde e que
"a consideração pessoal e profissional" do queixoso não diminuíra
face ao conhecimento público do teor da carta já que, mais tarde, um jornal
regional a publicara; no entanto, o tribunal considerou também que existiam
conflitos de carácter político entre os autores da carta e o funcionário em
causa e que, ao escreverem a carta, os seus autores tinham previsto "a
possibilidade de atentar contra o bom-nome e honra" do funcionário e,
"ainda assim, não se tinham abstido de o fazer", tendo-lhe causado
"tristeza, angústia, revolta e perturbação". A sentença de 3 de Abril
de 2008 do Tribunal Judicial da Comarca de Idanha-a-Nova é paradigmática de um
tipo de atitude judicial quando está em causa a liberdade de expressão: não há
qualquer referência à mesma ao longo das suas 24 páginas. Difícil mas não impossível...
Recorreram os
arguidos para o Tribunal da Relação de Coimbra invocando que ao escreverem a
carta estavam "a exercer um direito/dever de cidadania, no âmbito da
liberdade de expressão consagrada constitucionalmente", mas o tribunal de
2.ª instância confirmou a condenação, sem qualquer hesitação.
Felizmente para o
nosso bem-estar cultural e legal, existe o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (TEDH), que funciona como uma espécie de tribunal constitucional,
defendendo a nossa liberdade de expressão face ao "funcionalismo
jurídico" de muitas das decisões judiciais portuguesas sobre esta matéria.
E aí, José Moreira Bargão e Jacinto Domingos Correia conseguiram fazer valer a
sua razão.
Para o TEDH, a sua
condenação criminal em nome da defesa do bom-nome do funcionário constituíra
uma injustificada ingerência na liberdade de expressão dos mesmos que não
correspondia a nenhuma "necessidade social imperiosa", pelo que
declarou que tal condenação violava a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Para o TEDH e
contrariamente ao entendimento dos tribunais nacionais, os factos apurados no
processo de averiguações e no processo disciplinar constituíam uma base factual
suficiente para justificar o teor da carta, na qual os seus subscritores, ao
denunciarem os factos que consideravam irregulares ou ilegais, tinham também
transmitido a sua opinião sobre a actuação do funcionário. E para o TEDH, ao
fazê-lo não tinham ultrapassado os limites da crítica admissível, até porque
estava em causa o comportamento de um funcionário do Estado. Será, por vezes,
desagradável, mas é isto mesmo a liberdade de expressão...
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