O
problema do exercício do poder em situações de soberania limitada é saber que
parte é legítima e que parte não passa de usar a imposição externa para aplicar
a ideologia
1.
Durante as férias, ao arrumar papéis e livros, deparei-me com documentos e
estudos que ajudam a reflectir o momento judicial actual.
Descobri
o programa e as intervenções de uma conferência da MEDEL (Magistrados Europeus
pela Democracia e as Liberdades, associação de magistrados de 15 países)
subordinada ao tema «Julgar em tempo de crise».
Encontrei
um livro, “Juger Sous Vichy”, contendo as actas de um seminário organizado pela
École Nationale de la Magistrature. Revi ainda um pequeno e, propositadamente,
provocatório texto de Antonio Gramsci, intitulado “Doveri di un Judice (Elogio
de Ponzio Pilato)”.
Todos
tratam das perplexidades, das motivações e das condutas dos juízes em
circunstâncias de crise de soberania; analisam a atitude dos magistrados
perante a lei formalmente legal, mas contrária aos direitos fundamentais
constitucionais (nacionais ou internacionais) e negociada e aceite à revelia
dos interesses dos próprios povos.
A questão
adquiriu relevância em França, dada a reavaliação recente do governo de Vichy.
Este foi,
como se sabe, formalmente legitimado pela Assembleia Nacional, que investiu no
governo o marechal Pétain, outorgando-lhe plenos poderes para negociar com a
potência invasora: a Alemanha.
Os
responsáveis de tal regime desenvolveram então todo um arsenal de medidas e
leis que visaram, alegadamente, salvar a limitada soberania da França e o que
restava dos seus interesses, instituições e ordem jurídica.
Em alguns
pontos, porém – como, por exemplo, a clarificação jurídica do que é um judeu –,
os legisladores de Vichy, por ideologia própria (o anti--semitismo tinha raízes
profundas em França) ou por excesso de zelo, acabaram até por produzir uma
definição que veio a ser adoptada pelos alemães.
2. O
problema do exercício do poder em situações de soberania limitada – aí se
incluindo o exercício do poder judicial – é sempre esse: o de saber distinguir
o que é legítimo, apesar de resultante de uma determinação da potência
dominante; o que, sob a aparência de uma imposição externa, mais não é do que
uma despropositada e zelosa subordinação; e o que, pura e simplesmente,
consiste numa oportunista manobra ideológica para aplicar ideias próprias que
contrariam, em qualquer circunstância, os princípios constitucionais que dão
corpo à República.
«Le
Magazine Littéraire» (n.º 516, de Fevereiro de 2012) publicou, a propósito
destas situações-limite, um interessante caderno.
As
histórias pessoais de muitos dos brilhantes intelectuais que acederam e
excederam os ditames dos nazis e dos «vichystes», e as razões das suas
motivações reais aí analisadas, não podem se não inquietar-nos. As reacções
posteriores, também.
À
mobilização a favor da clemência, desenvolvida pelos sempre generosos
intelectuais franceses para com Robert de Brasillach, que excedera em muito o
próprio zelo ideológico do ocupante alemão e fora, por isso, condenado à morte,
respondeu, peremptório, De Gaulle: «Ele jogou, perdeu, deve pagar.» Brasillach
foi fuzilado em 6 de Fevereiro de 1945.
3.
Voltando à missão dos juízes, o equilíbrio parece situar-se, de facto, na
capacidade que estes tiverem de, perante a crise de soberania, saberem
distinguir o que vale e pesa a legalidade formal das disposições impostas por
tais regimes ou seus mandantes, face aos interesses do país, que só podem,
afinal, ser aferidos pela legitimidade dos princípios constitucionais que o
povo, quando soberano, quis que fossem os seus.
Jurista
e presidente da MEDEL
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