Utopias e austeridades
Por António
Cluny, publicado em 10 Jul 2012 - 03:00 | Actualizado há 8 horas 31 minutos
A prazo, não
pode haver sociedade mais totalitária que aquela que é obrigada a viver sem
sonhos individuais e colectivos de futuros melhores: sem um princípio de
esperança
Uma das
características que distinguiam, não há muito, os políticos conservadores dos
progressistas era, precisamente, os primeiros recusarem em princípio sacrificar
a realidade existente em nome do que, jocosamente, apelidavam “os amanhãs que
cantam”.
Utopia –
qualquer que fosse – era sinónimo de totalitarismo e algumas experiências
históricas pareciam até dar razão a quem assim pensava.
Foi pois em
nome da luta contra os “amanhãs que cantam” e respectivos “sacrifícios”,
designadamente se estes abarcassem algo mais do que a já co-natural contenção
do estatuto socioeconómico das classes populares, que se projectou uma
contra-utopia baseada no consumo fácil e alargado.
Esse
programa político teve sucesso e verdadeiramente condicionou – condiciona
ainda, porventura – as opções políticas de muitos eleitores, mesmo daqueles que
em certos momentos chegaram a acarinhar projectos que de algum modo defendiam
uma responsabilização social ampla, para se obter no futuro uma sociedade que
fosse menos desigual e mais solidária.
Hoje, porém,
é das áreas conservadoras que partem os apelos e as imposições de “sacrifícios”.
Só que eles
dirigem-se, não por acaso, apenas aos estatutos socioeconómicos e
constitucionais das camadas da população que antes viviam já economicamente
mais condicionadas, ou inclusive na mais declarada pobreza.
A exigência
de tais “sacrifícios” não é, todavia, feita em nome de uma promessa de uma vida
melhor, mas tão- -só em nome do medo credível e já real de um regresso a níveis
ainda mais graves de injustiça.
Não se
discute pois se com tais “sacrifícios” poderão aqueles que mais necessitam, ou os
seus filhos, vir um dia a melhorar a sua situação. Antes, se insiste em que, se
eles não forem aceites, o seu futuro será ainda mais negro.
Como
paradigmaticamente acontece entre nós, no caso da recente decisão do Tribunal
Constitucional, a discussão pública incide apenas na justiça/injustiça de fazer
pagar mais ou menos aos que trabalham num ou noutro sector da sociedade.
Por via do
medo instilado e através do fomento de tão convenientes como falsos
antagonismos, consegue-se evitar que se discuta a injustiça da repartição dos
“sacrifícios” entre, de um lado, os que, além da vida nua, já nada têm para
sacrificar, os que tendo algo sacrificaram já muito do que tinham e, de outro,
os que na verdade se mantêm ainda de fora de qualquer esforço digno desse nome.
Viveram
“todos” acima das suas possibilidades, diz-se.
Assim, o
peso de uma realidade cada vez mais dura e para a qual se sugere sempre não
existirem alternativas, a não ser no grau dos “sacrifícios” dos eternos
sacrificados, torna-se imediatamente insuportável.
Uma tal
sociedade, onde a ameaça do “sacrifício” contínuo se abate como um cutelo sobre
a liberdade de escolha dos cidadãos, é uma sociedade que só pode sobreviver
através de um autoritarismo crescente.
A base de um
totalitarismo novo residirá precisamente aí: na capacidade política e cultural
de se escamotear à maioria da sociedade a possibilidade de conceber e de
acreditar na existência de diferentes opções de vida pessoal, de alternativas
político-económicas, de distintos modelos de organização sociocultural.
A prazo, não
pode haver sociedade mais totalitária que aquela que é obrigada a viver sem
sonhos individuais e colectivos de futuros melhores: sem um princípio de
esperança.
Para o saber
não é preciso ter lido Huxley, Orwell ou Philip K. Dick; ou se calhar até é.
Jurista e
presidente da MEDEL
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