terça-feira, 10 de julho de 2012

Utopias e austeridades

Por António Cluny, publicado em 10 Jul 2012 - 03:00 | Actualizado há 8 horas 31 minutos

A prazo, não pode haver sociedade mais totalitária que aquela que é obrigada a viver sem sonhos individuais e colectivos de futuros melhores: sem um princípio de esperança

dinheiroUma das características que distinguiam, não há muito, os políticos conservadores dos progressistas era, precisamente, os primeiros recusarem em princípio sacrificar a realidade existente em nome do que, jocosamente, apelidavam “os amanhãs que cantam”.

Utopia – qualquer que fosse – era sinónimo de totalitarismo e algumas experiências históricas pareciam até dar razão a quem assim pensava.

Foi pois em nome da luta contra os “amanhãs que cantam” e respectivos “sacrifícios”, designadamente se estes abarcassem algo mais do que a já co-natural contenção do estatuto socioeconómico das classes populares, que se projectou uma contra-utopia baseada no consumo fácil e alargado.

Esse programa político teve sucesso e verdadeiramente condicionou – condiciona ainda, porventura – as opções políticas de muitos eleitores, mesmo daqueles que em certos momentos chegaram a acarinhar projectos que de algum modo defendiam uma responsabilização social ampla, para se obter no futuro uma sociedade que fosse menos desigual e mais solidária.

Hoje, porém, é das áreas conservadoras que partem os apelos e as imposições de “sacrifícios”.

Só que eles dirigem-se, não por acaso, apenas aos estatutos socioeconómicos e constitucionais das camadas da população que antes viviam já economicamente mais condicionadas, ou inclusive na mais declarada pobreza.

A exigência de tais “sacrifícios” não é, todavia, feita em nome de uma promessa de uma vida melhor, mas tão- -só em nome do medo credível e já real de um regresso a níveis ainda mais graves de injustiça.

Não se discute pois se com tais “sacrifícios” poderão aqueles que mais necessitam, ou os seus filhos, vir um dia a melhorar a sua situação. Antes, se insiste em que, se eles não forem aceites, o seu futuro será ainda mais negro.

Como paradigmaticamente acontece entre nós, no caso da recente decisão do Tribunal Constitucional, a discussão pública incide apenas na justiça/injustiça de fazer pagar mais ou menos aos que trabalham num ou noutro sector da sociedade.

Por via do medo instilado e através do fomento de tão convenientes como falsos antagonismos, consegue-se evitar que se discuta a injustiça da repartição dos “sacrifícios” entre, de um lado, os que, além da vida nua, já nada têm para sacrificar, os que tendo algo sacrificaram já muito do que tinham e, de outro, os que na verdade se mantêm ainda de fora de qualquer esforço digno desse nome.

Viveram “todos” acima das suas possibilidades, diz-se.

Assim, o peso de uma realidade cada vez mais dura e para a qual se sugere sempre não existirem alternativas, a não ser no grau dos “sacrifícios” dos eternos sacrificados, torna-se imediatamente insuportável.

Uma tal sociedade, onde a ameaça do “sacrifício” contínuo se abate como um cutelo sobre a liberdade de escolha dos cidadãos, é uma sociedade que só pode sobreviver através de um autoritarismo crescente.

A base de um totalitarismo novo residirá precisamente aí: na capacidade política e cultural de se escamotear à maioria da sociedade a possibilidade de conceber e de acreditar na existência de diferentes opções de vida pessoal, de alternativas político-económicas, de distintos modelos de organização sociocultural.

A prazo, não pode haver sociedade mais totalitária que aquela que é obrigada a viver sem sonhos individuais e colectivos de futuros melhores: sem um princípio de esperança.

Para o saber não é preciso ter lido Huxley, Orwell ou Philip K. Dick; ou se calhar até é.

Jurista e presidente da MEDEL

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