Ministra
da Justiça avança, até ao final do ano, com o registo de agressores sexuais de
menores. Grau de perigosidade dos condenados dita quem é informado da
identidade e localização.Polícia, escolas e vizinhança serão avisados caso
residam pedófilos na zona. Lista levanta polémica.
Há
mais de dez anos que Paula Teixeira da Cruz defendia que Portugal devia
referenciar os agressores sexuais de menores e divulgar, de forma restrita e
controlada, a sua identidade, foto, morada, crime e condenação. Como advogada
nunca conseguiu apoio. Agora, um ano passado com a tutela da Justiça, a
ministra vai avançar com a medida: até dezembro será criado um registo nacional
de abusadores de crianças, cujos dados serão transmitidos às autoridades
policiais, escolas e creches da zona de residência dos pedófilos. Nos casos
mais graves, o alerta estende-se aos vizinhos.
"Imagine-se
um homem que foi condenado por ter abusado e matado uma criança. As pessoas que
moram no prédio e que tenham filhos têm de ser avisadas", defende a ministra
da Justiça. E sustenta a decisão com números: "Mais de 90% destes
agressores são reincidentes, é uma compulsão. A possibilidade de voltarem a
abusar de uma criança é elevada. Temos de saber onde estão". Apesar de
inspirado na Lei de Megan norte-americana , o modelo de referenciação
português, ainda em estudo, vai impor limites para a divulgação dos perfis dos
abusadores: "A lista não vai estar acessível a quem quiser, na internet. O
modelo vai funcionar de cima para baixo. É o sistema judicial que decide quem
deve ser informado, de acordo com a perigosidade do condenado", garante a
ministra.
Os
agressores sujeitos a penas mais leves só deverão ser referenciados às forças
de segurança da sua zona de residência. À medida que aumenta a gravidade do
crime multiplicam-se também as entidades informadas pela Justiça sobre o
paradeiro do agressor sexual: escolas, creches, ATL e outras instituições
locais que trabalham diretamente com crianças. E por fim, os vizinhos. Para
evitar perseguições ou violência contra os abusadores, quem recebe a informação
é obrigado ao dever de sigilo. "Está prevista a possibilidade de haver
proteção para os condenados que constam da lista", adianta a ministra.
O
sistema de referenciação vai ser criado graças à transposição para o quadro
legal nacional da nova diretiva da União Europeia relativa à luta contra o
abuso e exploração sexual de crianças e pornografia infantil. Aprovada em
dezembro de 2011, permite aos Estados-membros criar "registos de autores
de crimes sexuais", cabendo a cada país definir as regras da divulgação:
"por exemplo, limitando o seu acesso às autoridades judiciais e/ou
policiais", sugere o documento.
Sem
efeitos retroativos, a lista nacional de agressores sexuais só incluirá
indivíduos condenados após a transposição da diretiva. Ninguém será informado
do paradeiro dos agressores sexuais condenados e atualmente em liberdade, nem
da libertação e morada dos quase 300 abusadores que cumprem agora pena nas
cadeias portuguesas.
Constitucional ou pena sem fim?
Marinho
Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, desconhece o diploma em detalhe — a
Ordem não foi consultada neste processo — mas duvida da constitucionalidade da
referenciação de agressores sexuais que já cumpriram a pena a que foram
condenados: "Em relação a este assunto há duas abordagens. Se se trata de
um caso clínico, de uma compulsão sexual incontrolável, então a pessoa tem de
ser tratada clinicamente. Se é um caso criminal, a pessoa é julgada, cumpre a
pena e não pode ser estigmatizada nem perseguida por isso. A Constituição da
República Portuguesa não o permite. A sua dívida para com a sociedade está
saldada. O facto de existir noutros países não significa que tem de existir
cá".
O
constitucionalista Pedro Bacelar Vasconcelos não censura, à partida, que a
ministra avance com este tema, mas quer vê-lo discutido, "de forma
profunda e muito concreta", por vários setores da sociedade. "Estão
em causa Direitos Fundamentais cujas lesões têm de ser ponderadas. O valor que
é o da proteção dos menores pode justificar a abordagem, mas é preciso avaliar
a sua adequação e proporcionalidade. Uma coisa será, por exemplo, que a pessoa
se apresente periodicamente numa esquadra, outra bem diferente será os vizinhos
saberem onde mora. Isso é uma pena para a vida".
Nuno
Garoupa é professor de Direito na Universidade de Illinois: vive nos EUA, o
país pioneiro das listas de agressores sexuais de menores. "Esta medida
colide com os direitos dos referenciados na lista, mas esses direitos não são
absolutos", diz o académico.
Nos
EUA todos os Estados são obrigados a ter um registo de abusadores, sendo que o
conteúdo e divulgação varia de Estado para Estado. "O trabalho académico
mostra que o registo é mais eficaz na prevenção e dissuasão da delinquência
sexual quanto mais público for. Mostra também que o registo favorece a
reincidência. Temos pois uma difícil equação de custo-benefício", remata.
Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança, centra-se nos
benefícios. É a "reincidência elevadíssima" deste tipo de agressor
que a faz pender para a defesa da referenciação: "Prova que nestes casos a
pena, só por si, não cumpre os objetivos de ressocialização e reinserção",
explica. Mas a procuradora gostava que a ministra da Justiça fosse mais longe e
instituísse também a avaliação do grau de perigosidade dos condenados: uma 'má
nota' perpetuaria a pena dos agressores sob a forma de medidas de segurança.
Um ano antes do prazo
Paula
Teixeira da Cruz tinha até 18 dezembro de 2013 para transpor a diretiva.
Antecipa-se num ano ao prazo. Diz que era uma prioridade do Executivo, que
"há muito por fazer" em termos de legislação de proteção de menores.
O diploma europeu dá-lhe ainda — e a todos os ministros da Justiça da UE — mais
armas de combate ao abuso sexual de crianças. Quem investiga, por exemplo,
deverá poder recorrer a escutas, vigilância por meios eletrónicos,
monitorização de contas bancárias ou até mesmo criar uma identidade falsa na
internet.
Mas
a nova diretiva também quer os países a trabalhar na reinserção e reabilitação
dos condenados: "Deverão ser propostos aos agressores sexuais programas ou
medidas de intervenção, de caráter facultativo, centrados nos aspetos médicos e
psicossociais".
Neste
ponto, a ministra já leva o trabalho avançado. Desde 2009 que a Direção-Geral de
Serviços Prisionais tem em curso um Programa de Intervenção Dirigido a
Agressores Sexuais. Estruturado pelo psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves funciona
em três cadeias — Carregueira, Paços de Ferreira e Funchal — e é
"voluntário, o que lhe tira 'clientela'. Anualmente, apenas 15 a 18
reclusos aceitam participar, em cada prisão. No ano passado foram 52 os que
frequentaram, em acumulado, as sessões. No início de 2012 já eram só 20. Depois
de três anos de programa, a maioria continua a sair em liberdade sem passar por
qualquer intervenção específica.
Megan e Sarah mudaram a lei dos EUA e de Inglaterra
Megan
Kanka tinha sete anos quando foi violada e morta pelo vizinho da frente, em
Hamilton, nos EUA, em julho de 1994. O homicida, soube-se depois, tinha antecedentes
por abuso sexual de menores. Os pais de Megan não pararam até convencerem o
Senado a aprovar uma lei que obrigasse à referenciação e divulgação pública do
perfil e morada de abusadores: não queriam que mais nenhum pai perdesse um
filho por desconhecer que havia um pedófilo na sua rua. Hoje, a Lei de Megan
vigora em todos os estados — só varia o grau de acesso aos perfis. Na
Califórnia basta ir a www.meganslaw.ca.gov e procurar no mapa do Estado quem
mora numa rua, área de código postal, cidade ou pesquisar por parque infantil
ou escola. O perfil do pedófilo inclui foto, nome, morada, altura, peso, cor do
cabelo e olhos, etnia, cicatrizes e tatuagens e crime cometido.
Em
Inglaterra outro crime inspirou nova lei. Sarah Payne tinha sete anos quando
desapareceu em West Sussex, em julho de 2001. Foi encontrada 17 dias depois,
morta num campo de milho. Roy Whiting, um pedófilo reincidente, foi condenado.
Os
pais encetaram uma campanha semelhante à dos pais de Megan. Também queriam ter
acesso público à identificação dos 110 mil abusadores referenciados em
Inglaterra. O jornal "News of The World" juntou-se à luta e publicou
fotos e moradas de 50 agressores. Em 2011, o Governo anunciou que a Lei de
Sarah seria implementada.
REPORTAGEM
Carregueira é uma das três prisões com programa para evitar reincidência de condenados por abuso sexual
"Faltam quatro anos para lhe pedir desculpa"
Sessões diferentes para abusadores de menores e violadores. Há cada vez mais condenados
Tem
34 anos, está a cumprir pena no Estabelecimento Prisional (EP) da Carregueira,
em Sintra, condenado a oito anos e seis meses por violação de uma rapariga. Na
sua voz há uma vontade convicta, trabalhada, que só as grades impedem de
concretizar no imediato: "Faltam quatro anos e nove meses para lhe pedir
desculpa. Quando sair vou ter com ela e peço desculpa pelo que lhe fiz".
Durante quase um ano frequentou o Programa de Intervenção Dirigido a Agressores
Sexuais. "Aquilo mudou-me", diz Rui*.
Todas
as semanas, uma hora e meia na conversa, em grupo, com um psicólogo e outros
reclusos condenados pelo mesmo crime, 44 sessões no total a falar sobre o que
fizeram, os motivos, as vítimas, as fantasias, a consciência emocional e como
evitar que reincidam. É quase uma reunião de anónimos, numa sala sem nome. Nos
altifalantes, os reclusos são chamados pelo número mas sem mencionar para quê
ou para onde. Quem chama sabe, quem é chamado também.
Um
encontro daqueles às claras denunciaria os crimes de cada um. E numa cadeia
ninguém confirma a ninguém que é agressor sexual, que é 'viola'. A alcunha é
uma marca, uma distinção negra. São olhados de lado por todos. Entre pares,
cometeram o pior crime. Mas, pelo menos em número, violadores e abusadores de
menores estão a ganhar presença nas cadeias.
No
início de 2012, eram 586 os reclusos a cumprir pena por crimes sexuais, mais 8l
em dois anos. A subida é ainda maior nas condenações por crimes contra menores
(abuso, lenocínio, tráfico e pornografia), que aumentaram quase 20%, sendo já
superiores às de violação. O crescimento, aliás, começa cá fora. Em 2011 os
órgãos de polícia criminal registaram mais 95 participações de crimes contra
crianças, adolescentes e dependentes (783 no total), com os casos de lenocínio
e pornografia de menores (89) a dispararem 37%. As violações (374) desceram. O
programa de prevenção da reincidência arrancou em 2009, concebido pelo
psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves, que deu formação a 22 técnicos de 11
prisões. Antes disso, os agressores sexuais saíam em liberdade sem que nenhum
trabalho fosse feito para evitar recaídas. Durante a pena, iam a consultas de
clínica geral, alguns ao psicólogo e poderiam, no máximo, tomar fármacos para a
ansiedade. Os medicamentos inibidores do desejo (castração química) não são
permitidos em meio prisional.
As
sessões só decorrem nos EP da Carregueira, Paços de Ferreira e Funchal e a
frequência é voluntária, o que faz com que poucos reclusos aceitem participar.
Têm uma média de 35 anos, a pena a cumprir ronda os sete anos e meio e a
maioria não assume o crime. "Os poucos que aceitam entrar no programa
acham que obtêm vantagens na redução da pena ou na conquista de precária.
Quando percebem que não acontece, que têm de admitir o crime, desistem. Temos
70% de abandono. Chegam a acabar o programa apenas dois ou três homens. E isso
é um problema, porque só pena, só castigo, não resolve nada", explica o
psicólogo Vítor Vieira, um dos dois coordenadores do programa na Carregueira.
Aqui, cerca de metade dos reclusos cumpre pena por crimes sexuais: chamam-lhe a
'prisão dos inocentes', tal é o número de condenados em negação.
Falar de emoções pela primeira vez
Rui
já não diz que é inocente. Mas disse durante anos, quando o prenderam, quando
foi julgado. E jurou-o à mulher e ao filho ainda sem idade para perceber. E
disse convicto. "Mentia a mim mesmo. Convenci-me que tinha sido sexo
consentido, inventei mil histórias, a vítima era eu".
Garante
que foi o programa, as explicações dos psicólogos cheias de exemplos, a
partilha de histórias semelhantes que o mudaram. "Parece estúpido, mas
tive de aprender que o sexo não pode ser forçado, um 'não' significa 'não'. É
como quando queremos passar a fronteira, entrar noutro país: precisamos de
passaporte, de autorização. Nas relações sexuais também. Mesmo com a nossa
mulher. Puseram-me a pensar na vítima, a sentir o que ela sentiu. Senti
vergonha, arrependimento. Já disse a verdade à minha família".
Nas
prisões onde o programa está ativo, os reclusos foram divididos em dois grupos:
violadores e abusadores de menores. Era impossível misturá-los. "Seria
como juntar raposas e lobos. Iria provocar inibição, além de que são criminosos
muito diferentes", explica Vítor Vieira. As primeiras sessões são de motivação
para a mudança, para a aceitação do crime. Só depois se avança para coisas mais
profundas, como a consciência emocional, a empatia pela vítima, as fantasias e
a sexualidade. No fim ensina-se a prevenir a recaída. "É um programa
semelhante ao dos toxicodependentes, com várias fases para não reincidirem. A
maioria fala aqui, pela primeira vez, das suas emoções", conta o técnico
da Carregueira.
Jorge
Monteiro, diretor do programa na Direção Geral de Serviços Prisionais (DGSP),
reconhece que a frequência está aquém do desejado. "Toda a intervenção em
meio prisional é voluntária. Insistimos com os reclusos que estão no fim da
sentença, mais perto da liberdade, mas este é um programa difícil, de elevada
ativação emocional, que implica alterar atitudes, crenças. Ainda assim, a
avaliação já feita mostra uma alteração do comportamento dos
participantes". "Não percebia como fiz tal coisa" Paulo*, 38
anos, está a dois anos e quatro meses da liberdade. O tribunal condenou-o a
quase seis por ter abusado de uma menina do seu núcleo familiar. "Pedi ao
juiz para ir para uma prisão onde me ajudassem. Sempre disse que era culpado,
mas não conseguia perceber nem explicar como fiz tal coisa", conta, na
sala de visitas do EP da Carregueira. E enquanto conta parece quase feliz.
"Nunca me senti tão livre. Se abrissem as portas não fugia. Sinto um
alívio. Aquelas sessões deram-me uma maturidade que nunca tive. Ali tirei a
angústia que trazia dentro. Quem tenha ainda um pingo de cabeça não está bem
com isto, é como um nó sempre a apertar. Conheci-me, reconheci os pontos
fracos, falei do meu pai alcoólico, da falta de amor da minha mãe, da saída de
casa aos 18..."
Trabalhador
da construção civil, duas filhas, punha no álcool as culpas pelo crime.
"Sei agora que a bebida foi só a ignição. Estava sozinho, deprimido, e
encontrei alguém vulnerável, acessível, que me dava atenção... Agora sei
reconhecer e evitar as situações de risco: não posso beber; se estiver ao pé de
crianças e as fantasias voltarem devo afastar-me e pedir ajuda médica; e tenho
de evitar a solidão, praticar desporto, meditar... Deram-me as ferramentas para
não cair em tentação quando sair".
Raquel Moleiro e Ricardo Marques
Expresso de 09-06-2012
(Nomes dos arguidos fictícios, a pedido dos mesmos)
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