sábado, 5 de maio de 2012

Uns com tenazes, outros com pinças


Todos sabemos as graves consequências económicas e sociais da passagem à prática do acordo assinado com a troika pelos três maiores partidos portugueses Sendo discutível o grau de inevitabilidade das medidas que têm vindo a ser tomadas, certo é que o Governo que as toma resultou de eleições livres. É com este Governo que os portugueses têm de viver. Mas é também com os portugueses que o Governo tem de viver. E nesse aspecto parece que a atenção que é dada pelo Governo a alguns portugueses e às suas dificuldades não é propriamente aquela que poderia e deveria ser dada.
Em Espanha, no passado mês de Março, foi aprovado o Real Decreto-Lei 6/2012, que veio estabelecer medidas urgentes de protecção dos devedores hipotecários sem recursos a partir da constatação da “dramática realidade em que se encontram mergulhadas muitas famílias, que, em consequência do desemprego ou da ausência de actividade económica, prolongados, deixaram de poder cumprir as suas obrigações derivadas dos empréstimos ou créditos hipotecários contraídos para a aquisição da sua habitação”. Este diploma veio aprovar diversas medidas, aplicáveis a pessoas no limiar da exclusão social e um Código de Boas Práticas para uma reestruturação viável das dívidas contraídas para compra de habitação própria a que aderiram, de imediato, a quase totalidade das entidades bancárias que operam em Espanha no mercado do crédito hipotecário imobiliário. Segundo li em qualquer lado, a CGD e o BES não terão aderido. Não admira.
Em Portugal ainda nada foi legislado sobre esta matéria. A única coisa de que se tinha ouvido falar neste campo foi de uma sentença recente de um juiz de Portalegre que sozinho já fez muito: decidiu que um banco que emprestou a um casal 117 mil euros para a compra de uma casa que avaliou nesse valor e que, quatro anos depois, invocando uma dívida de 129 mil euros, tendo em conta os juros moratórios, a comprou em tribunal por 82 mil euros, por incapacidade de os devedores cumprirem as prestações, não pode exigir que o casal lhe pague os 47 mil euros diferença. Segundo esta sentença, o banco, ao ter comprado a casa, ficou pago dos 117 mil euros que emprestara, pelo que só ficou com direito a receber o que faltava para atingir os 129 mil euros da dívida. O casal ficou, assim, só a dever os 12 mil euros dos juros e não os pretendidos 47 mil. Não foi propriamente considerar que a mera entrega da casa ao banco pagava a dívida, como se publicitou, mas foi um louvável acto de Justiça.
Esperava-se naturalmente que o nosso Governo avançasse rapidamente com medidas como as aprovadas em Espanha ou outras, mas até agora, de concreto, só se conhecem iniciativas parlamentares do Bloco de Esquerda e do Partido Socialista. A novidade foram as declarações do primeiro-ministro na passada terça-feira de que é necessário mexer nas condições dos contratos de crédito à habitação, nomeadamente para evitar o aumentos dos spreads em certas situações. Na verdade, os bancos aproveitam qualquer alteração contratual mesmo que não vejam diminuídas as suas garantias para aumentar a taxa de juro que cobram. No caso dos divórcios, por exemplo, em que um dos membros do casal quer ficar com a casa de morada de família, os bancos não perdoam e exigem um enorme aumento da prestação para aceitarem a saída contratual do outro membro do casal. Ou quando o devedor pretende arrendar a casa por qualquer motivo, nomeadamente porque arranjou emprego noutra localidade, os bancos igualmente aumentam brutalmente o valor da prestação para autorizar esse arrendamento que em nada os prejudica, como é evidente .
Mas o primeiro-ministro, ao apontar a necessidade de proceder a estas alterações, não deixou de dizer que se estava perante uma iniciativa de deputados, que o Governo a seu tempo interviria no processo (parece que haverá estudos com o Banco de Portugal), mas que “terá que se trabalhar bem para ver como é que isto se faz, em respeito, evidentemente, por quem emprestou dinheiro, pela propriedade”. Isto é, com calma, há que deixar o processo lentamente evoluir e em devido tempo se alterarão as coisas.
Ora esta atitude cautelosa e muito pouco determinada, quando diariamente há famílias a ficar sem a sua casa de habitação, provém do mesmo Governo que não hesitou, quando entendeu ser preciso cortar 13.º e 14.º mês, reformas e pensões e para acabar com as reformas antecipadas actuou com toda a velocidade e deslealdade.
É lamentável termos a noção de que para atacar os direitos e interesses dos funcionários públicos ou dos trabalhadores por conta de outrem o Governo não hesita e para moralizar um pouco a actividade bancária face a situações de gritante injustiça social, todo o cuidado é pouco e não há pressas. E vamos ver as medidas que serão aprovadas…
Custa ver o Governo da Nação tratar alguns cidadãos com tenazes e outros com pinças.
Francisco Teixeira da Mota
Público de 04-05-2012

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