“Claro que houve pressões externas, só que não têm que ser explícitas”. Na primeira entrevista que deu desde que deixou o cargo, Souto de Moura diz que a imagem do Ministério Público piorou e que próximo PGR deve ser magistrado.
Quase seis anos depois de deixar o cargo de procuradorgeral da República (PGR), José Souto de Moura, 61 anos, aceitou dar uma entrevista, por escrito, ao PÚBLICO, meses antes de o seu sucessor ser substituído. Procurador de carreira, Souto de Moura é actualmente juiz do Supremo Tribunal e vai falar no IX Congresso do Ministério Público, que começa hoje em Vilamoura, sobre Ética e Responsabilidade – A Imagem da Justiça.
-Que imagem acha que o Ministério Público (MP) tem hoje na sociedade portuguesa?
- A imagem que o MP tem hoje, na nossa sociedade, tal como a imagem que têm os juízes, está completamente condicionada pela ideia, repetida à exaustão, de “crise da Justiça”. Confundemse as pessoas com o sistema ou o serviço que se presta, como se tudo dependesse só delas. E aqui haveria então que fazer uma série de distinções. Em primeiro lugar, saber se estamos perante um sentimento de crise e portanto face à subjectividade de cada um, ou se baseamos o nosso juízo em estudos credíveis. Depois, quando se fala de crise, teremos que ter uma referência ao tempo da “não crise”. Nunca ninguém me disse desde quando é que há crise. Mais, comecei a trabalhar há 38 anos como delegado e pouco depois já se falava em crise da Justiça. Olho para os países com sistemas parecidos com o nosso e as críticas são iguais, senão piores. Por isso é que às vezes penso se o facto de a resposta dos tribunais estar aquém da procura não será quase uma característica endémica do serviço da Justiça. Mas as pessoas estão descontentes, ou dizem estar descontentes com a Justiça, e isso é, pelo menos do ponto de vista sociológico, um facto importante. Apesar de tudo, não será de perguntar se não é por o mal ser cada vez menor que mais custa suportar o que dele resta? Fico estupefacto com o resultado de sondagens que aparecem regularmente em jornais sobre a “nota” que se dá aos magistrados, porque a acho injusta, embora seja parte interessada. Parece-me que no fundo da actual situação está um desfasamento completo entre o funcionamento da máquina judiciária e as características da prestação de outros serviços; no mundo de hoje domina outra celeridade, precisão, previsibilidade, por exemplo. Importa distinguir entre o que fazem os magistrados por sua conta e risco e o que são obrigados a fazer devido às leis que têm que cumprir e ao sistema em que estão inseridos.
- Após quase seis anos sobre o fim do seu mandato, acredita que a imagem da Justiça em geral e, do MP em particular, piorou ou melhorou? Porquê?
- Interessa-me muito mais ver se a Justiça piorou ou melhorou do que saber se a respectiva imagem melhorou ou piorou. Porque a imagem pode ser mais ou menos fiel à realidade. Isto dito, creio que a imagem da Justiça piorou. Porque há mais processos ditos “mediáticos”, porque há mais processos que afrontam detentores de poder, e porque quem se confronta com a Justiça, estou agora a pensar na justiça penal, tende a descredibilizar o aparelho que o está a incomodar. Ora os processos mais mediatizados são sempre os mais complicados, os mais morosos, aqueles que retratam menos o funcionamento regular dos tribunais. A isto acresce o facto que se não pode escamotear a morosidade processual, em certas áreas bem delimitadas – acção executiva, litigância cível de massa, justiça tributária ou do trabalho, mas sem se poder generalizar a todas as áreas geográficas de todo o país.
- Muitos dizem que foi vítima da mediatização da Justiça, o actual procurador-geral também se queixa dos media. Como avalia hoje o facto de não lhe terem renovado o mandato? Parecelhe justa a substituição do seu sucessor?
- Ao que creio, a substituição do actual procurador-geral será imposta pelo facto de atingir o termo do mandato após cumpridos os 70 anos. No meu caso foi diferente. Mesmo que eu estivesse disponível para um segundo mandato, isso mesmo teria que ser proposto pelo Governo da época ao Presidente da República. Tal não terá acontecido e eu compreendo. Acho graça ao facto de a sua pergunta ligar essa questão da não renovação dos mandatos à comunicação social. Aí posso falar só por mim e para dizer o seguinte: a ocupação do cargo de procurador-geral por magistrados, e acho que é assim que deve ser, não foge à problemática das relações da justiça com a comunicação social. E este relacionamento é algo que exige uma aprendizagem que a esmagadora maioria dos magistrados não tem. Por uma razão simples: é que os magistrados são nomeados, promovidos, transferidos, atingem o topo da carreira, sem recorrer à comunicação social. Noutros sectores profissionais ninguém consegue nada sem a comunicação social. Não falo só dos titulares de cargos políticos, penso na cultura, no desporto, no espectáculo.
- O actual procurador-geral termina em Outubro o seu mandato. Que perfil deverá ter o seu sucessor? Deve ser um procurador?
- Fui o primeiro procurador-geral que antes tinha sido sempre magistrado do Ministério Público. Mas, antes de mim, e depois de mim, os procuradores-gerais foram juízes que no início da carreira tinham sido do Ministério Público. Acho que o procurador-geral deve ser magistrado, não necessariamente do Ministério Público. O que é indispensável é que tenha um bom conhecimento desta magistratura e características pessoais que facilitem o relacionamento com os seus subordinados, porque a hierarquia no Ministério Público tem exigências próprias que a tornam pouco compreensível aos olhos de alguns. Na verdade, não estaremos perante um tipo de hierarquia comum à administração pública em geral e muito menos perante uma hierarquia própria das forças militares ou de segurança. Do lado de quem emite ordens ou directivas para se concretizarem em processos específicos importará sempre ter em conta que as mesmas se dirigem a magistrados. Ora, esta qualidade é indissociável, por um lado, da detenção de poder apanágio de uma autoridade pública, e, por outro, de um núcleo de autonomia que assenta no juízo próprio de interpretação da lei, e na consciência jurídica individual. Mas claro que quem recebe as ordens ou instruções tem mesmo que acatar dentro dos parâmetros legais. Na prática, surgirá como essencial a consciência de que se pertence a uma magistratura unitária, onde a titularidade de um processo pode ser atribuída a diferentes magistrados (estamos longe, portanto, da ideia de “juiz natural”) e onde assume grande importância a uniformização de procedimentos em homenagem à segurança jurídica da comunidade.
- Em mais de 35 anos de democracia, houve cinco procuradores-gerais com estilos e objectivos diferentes. Que lições tirou da sua experiência e que conselhos dá ao próximo procurador-geral?
- Não dou evidentemente lições ao próximo procurador-geral. A principal lição que tirei do meu tempo de procurador-geral foi a de que se trata de um cargo extremamente exposto e tem que se estar preparado para essa exposição, e de que, tal como os outros magistrados do MP, o procuradorgeral deve orientar-se só por critérios de objectividade e legalidade. Mesmo que isso possa ser complicado.
- O actual procurador-geral e alguns advogados e políticos ilustres têm criticado os poderes do Conselho Superior do MP. Sentiu-se durante o seu mandato limitado pelo CSMP? Sentiu que lhe faltavam poderes para executar as suas funções?
- A Procuradoria-Geral conta com o órgão individual procurador-geral e com o órgão colectivo Conselho Superior (entre outros). Há uma ligação porque o procurador-geral preside ao Conselho. Cada um tem as suas competências e eu aí não mexeria. O que me parece é que o procurador-geral deve poder escolher os seus mais directos colaboradores e estes não lhe devem ser impostos pelo Conselho.
- O actual procurador-geral tem falado várias vezes sobre o fim da impunidade que existiria em alguns sectores. Foi durante o seu mandato que começaram a surgir casos envolvendo personagens mediáticas. Face ao que se tem passado nos últimos tempos acha que o MP continua imune a pressões externas?
- É justo que se diga que já no mandato do dr. Cunha Rodrigues houve processos como o “do sangue contaminado”, “do fax de Macau”, “das facturas falsas”, “das viagens dos deputados”. No meu tempo claro que houve pressões externas, só que essas pressões não têm que ser explícitas nem exercidas por figuras públicas. Sem falsa modéstia, reconheço as minhas limitações, que se manifestaram no exercício do cargo de procurador-geral. Mas tenho também a lucidez de perceber por que é que se chegou à campanha que a certa altura se desenvolveu contra mim, ao nível mesmo do achincalhamento pessoal. Presentemente não sei se há, e portanto quais são as pressões que se exercem sobre o Ministério Público. Sei é que quem quer ser magistrado e “honrar a camisola” tem que ser imune às pressões.
- Foi recentemente polémica a saída de um procurador para o sector privado. Acha correcto que os magistrados do MP possam sair para o privado e regressem sem terem sequer que explicar o que estiveram a fazer e para quem?
- Parece-me que os magistrados têm o direito de pedir uma licença como todos os outros servidores da função pública. O que não podem nem devem é ir “para a privada” exercer uma função, trabalhar num processo judicial, onde ponham a render conhecimentos adquiridos no despacho desse processo, mas, digamos, do outro lado. Estamos aqui perante um domínio que tem a ver com a ética individual do exmagistrado.
Temor reverencial desapareceu
- Sei que vai falar sobre os deveres deontológicos dos magistrados. Acha que há corporativismo na análise das infracções disciplinares dos procuradores? E justiça nas suas avaliações?
- Durante o tempo em que estive no Conselho [Superior do MP], e também estive lá, eleito, quando era procurador em Setúbal, não me apercebi desse corporativismo. E creio que está a querer referir-se a uma suposta tendência para atenuar as culpas dos magistrados alvo de processos disciplinares. Agora, não posso deixar de notar que, ao longo das últimas décadas, o Ministério Público sofreu as mudanças que a sociedade em geral sofreu. A maneira de encarar a autoridade, e isso tem a ver com hierarquias, mudou por todo o lado. Havia antes um temor reverencial, muito cómodo para quem mandava, que desapareceu. E havia uma preservação da imagem da classe que penso ter desaparecido também. Quanto à avaliação do trabalho dos magistrados, não sei como estão as coisas hoje. Continuo a achar, como achei no meu tempo, que importa diferenciar, e não pode nivelar-se tudo por cima.
Mariana Oliveira
Público de 02-03-2012
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