sábado, 24 de março de 2012

As duas justiças


O bastonário dos advogados, Marinho Pinto, costuma desferir ruidosos ataques contra aquilo a que chama “mercantilização da Justiça”. Pelo meio confunde sempre várias coisas, por exemplo, que já vai sendo tempo de a Justiça ser pensada como realidade económica.
Sabendo-se que a Justiça portuguesa tem problemas com a eficiência, que não se deve necessariamente, é bom dizer, à improdutividade dos agentes do sistema, mas a causas mais profundas, as queixas de Marinho Pinto deixam sempre a impressão de vir de um tempo pré-troika.
Nesse tempo pré-troika podíamos fazer discursos rompantes na abertura do ano judicial, repetindo que a Justiça é um bem público e que o direito à justiça está a ser saqueado. Mas o tom e a demagogia não chegam. Há muito em que a organização da Justiça ganharia, se passasse por terapia económica. A Justiça é demasiado importante para ser deixada aos juristas.
Mas Marinho Pinto está certo, quando aponta o dedo para certas manifestações de privatização da Justiça. Ele parece meter tudo no mesmo saco: uma mediação de conflitos de consumo é igual a uma arbitragem em contratos públicos. O que não se pode dizer que ajude à clareza. Onde ele tem razão, no entanto, é por denunciar dois fenómenos que corroem em absoluto o Estado de direito e a igualdade perante a Justiça.
O primeiro desses fenómenos é a privatização do Estado. Em minha opinião, só muito excepcionalmente é que o Estado deveria poder encomendar a preparação de leis a escritórios de advogados. Pior ainda se essas leis estiverem pejadas de consequências financeiras para o erário público.
Para dar um exemplo, nunca a lei das parcerias público-privadas deveria ter passado à nascença por aqueles que depois iriam socorrer-se dela em representação dos privados. Há uma errada divisão do trabalho entre o Estado e os advogados na gestação de certas leis.
O segundo fenómeno, igualmente de privatização do Estado, é a fuga para a arbitragem. É claro que a arbitragem é um método estabelecido na prática comercial. Mas, por isso mesmo, perceba-se que isso não pode representar uma via verde para verdadeiras fugas à justiça pública, só porque a privada se tornou mais conveniente.
Fui das primeiras pessoas a escrever sobre o caso dos contentores de Alcântara em 2008. Não quero agora discutir o caso em concreto. Aquilo que me parece censurável, porque revelador da tal fuga privatizadora, é abrir um dia os jornais e depararme com as palavras do presidente do tribunal arbitral: “Decidimos que a lei parlamentar que revoga o acordo é inconstitucional, porque viola o princípio da confiança.”
Mas se vocês perguntarem: onde é que está a decisão arbitral para podermos escrutinar melhor os seus argumentos e sentido, uma preocupação inteiramente legítima numa matéria de interesse público, a resposta é que ninguém conhece. Estas sentenças são secretas. Decididas entre os árbitros das partes, ficam também com eles.
Se não me engano, grande parte dos contratos de concessão do Estado tem cláusulas de arbitragem que garantem decisões secretas. Escapa-me, mas não é tema para aqui, como é que estas decisões arbitrais respeitam a Constituição. E sobre este tema das arbitragens dos contratos públicos, em que há muito dinheiro em jogo, muito mais haveria a dizer.
Como a Justiça normal não funciona, os “ricos” partem para outra. Com o tempo, os tribunais do Estado passam a ser para o zé povinho. Os ricos têm a sua Justiça privada e sigilosa. Ora, não será isto uma grande injustiça?
Pedro Lomba 
Público de 22-03-2012

Sem comentários: