quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

A Amizade

Não resisto a partilhar aqui o texto que o Marcelo colocou no incursões e que também e tão bem me retrata...

AuBonheur des Dames 47

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Três amigos conversam diante de chávenas vazias num dia feio, triste e húmido. Estão numa esplanada envidraçada praticamente deserta, frente a um jardim onde vagueia um perdigueiro atrevido. Discutem a vida, o mundo, eles próprios e as suas circunstâncias.Basta olhá-los para saber que são barcos que viram muito mar, muitos portos, algumas tempestades e, porque não?, uma que outra brisa marinha, fresca e repousante, brisa com cheiros de terra próxima, um vago perfume de laranjais carregados, de acácias vermelhas, de terra quente depois da chuva.
Três amigos como três marinheiros, três pescadores reformados, olhos que viram os nevoeiros da Terra Nova, os sinos de bordo, as roncas do porto discutem o mundo, a vida, eles próprios.
E há alguma vivacidade, demasiada porventura, nos argumentos que trocam, nas interrupções, nos gestos vivos malgrado as cabeças já brancas como as barbas que, estranhamente, ou nem isso, todos usam.
Noutro tempo, noutro lugar, os ecos da conversa alimentariam a ideia de uma discussão apaixonada, quase colérica. Mas basta ver o cuidado com que se dirigem a um deles, o que espeta a orelha, com a mão em arco como se ouvisse mal, para perceber que daquela conversa está arredado o azedume, o escárnio, o sarcasmo. Há nas pausas que fazem, nos pequenos e raros silêncios que ponteiam uma afirmação mais vigorosa, uma subtil teia de carinho a fazer a sua caminhada.
A amizade é um percurso de obstáculos, semeado de saídas falsas, de becos, alguns alçapões. Exige a quem a pratica um constante cuidado, paciência redobrada e fôlego, muito fôlego. Os amigos, diz-se, são o sal da terra e como o sal necessitam de muita água salgada, algum vento, muito tempo, outro tanto de sol. E da constante labuta do marnoto, lavrador de minerais, alquimista humilde e necessário para que a onda nos chegue à mesa, e com uma pinga de azeite um pão, um tomate e duas sardinhas, nos faça descobrir o milagre quotidiano de uma conversa, com amigos, justamente, mesmo que seja numa esplanada deserta, num dia cinzento e triste, diante de um jardim no inverno, com um perdigueiro ao longe que corre sem saber que três velhos companheiros discutem o mundo, a vida eles próprios.
Depois levantam-se, um deles deixa umas moedas sobre a mesa, vestem os capotes, dirigem-se para a porta, abrem-na sem pressas e seguem lentamente passeio fora até à curva do caminho...
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* Fotografia de grupo: m.s.p. e m.s.s. numa esplanada no Foco com m.c.r.
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o título deste texto só foi encontrado depois dele estar escrito: fica no fim que é para aprender!

1 comentário:

Simas Santos disse...

Acabei de colocar no Incursões a falada fotografia de grupo.... a que se refere o título