O CPP anterior, o de 1929, que, apesar de aprovado pela Ditadura Nacional, tinha algumas normas mais liberais do que alguma da prática forense que se vem entronizando no domínio do Código em vigor, previa o que se chamava uma definição substancial de arguido: seria arguido aquele sobre quem recaísse forte suspeita de ter cometido infracção cuja existência estivesse suficientemente indiciada * . Como se sabe, o novo CPP, o de 1987, optou por um critério diverso e passou a adoptar uma definição formal: a constituição como arguido ficou a depender de uma pessoa ser sujeito a certos actos processuais. O pressuposto de ter que subjazer a isso uma suspeita suficiente desapareceu. O Anteprojecto, nessa parte dá um passo positivo ao clausular [artigo 58º, n.º 1, a)] que será constituído como arguido logo que «correndo inquérito contra pessoa determinada que seja suspeita da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal» [itálico nosso].
Sucede, porém, que não será demais este aviso, prevenindo que surjam algumas interpretações que logo recuperem o espírito passado face ao qual o legislador quis inovar. A fórmula «correndo inquérito contra pessoa determinada houver juízo de fundamentada suspeita de ter cometido crime [..., itálico nosso]», talvez seja preferível. É que assim, a constituição de arguido passa a ocorrer só quando houver um juízo de suspeita consistente, e não nos casos em que o inquérito tem como base uma denúncia que se revela manifestamente infundada. É que, ensina-mo a experiência, não há situação mais ridícula, mais estigmatizante e mais veaxtória do que um sujeito, claramente vítima da denúncia de um paranóico litigante ser constituído arguido [para sua defesa!, triste ironia] e logo a seguir automaticamente ser-lhe imposto o TIR, com toda a carga traumática que daí decorre, mormente quando logo a seguir a comunicação social dá conta do facto, apregoando-o aos sete ventos, numa notícia que, raramente é desmentida, quando vem [quantas vezes tão tarde!] o arquivamento ilibador.
O que digo parece ter alguma lógica, no próprio espírito do Anteprojecto, pois que ele propõe para a alínea d), que a constituição como arguido tamém opera quando «for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada» [itálico nosso]. Se a expresão «auto de notícia» é aqui usada em sentido técnico [correspondendo a um flagrante delito presenciado, artigo 243º do CPP] é evidente que o flagrante é a melhor demonstração do fundamento do auto de notícia, pelo que a norma é inútil. Se o legislador usou aqui linguagem de leigo e o auto de notícia que refere é o auto no qual se narre uma denúncia, então é bom que melhore a terminologia, para não aumentar a confusão.
* Veja-se o espírito do CPP anterior nesta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.01.84: «só pode qualificar-se como arguido a pessoa sobre a qual recaia uma carga indiciária bastante para enformar forte suspeita de que tenha perpetrado uma infracção suficientemente comprovada (artigos 251º, 291º, § 1º, e 349º do Código de Processo Penal)».
Quantos arguidos existem no CPP da democracia com base em situações que quem está a constituir a pessoa naquele gravoso estado sabe que equivalem a nada? Digam a verdade, por favor!
2 comentários:
O projecto de revisão do CPP, na parte relativa à constituição do arguido, apresenta em meu entender, uma alteração positiva e uma alteração negativa.
A parte positiva radica efectivamente na necessidade de suspeita da prática de crime, quer para a constituição, quer para o interrogatório (art. 58.º, n.º 1, al. a) e 272.º, n.º 1). E aqui concordo em absoluto de que a exigência de uma "suspeita fundamentada" seria mais seguro e preciso.
Realmente, em quanto casos não foi obrigatória para o instrutor do processo a constituição, interrogatório de arguido e sujeição a TIR, quando era evidente a falta de fundamento substancial ou sequer de justificação para tal. Aliás, queixas terão sido feitas apenas com tal intuito, mas ao interrogatório/sujeição a TIR não podiam o MP/polícias evitar (mesmo que o quisessem), como decorria cristalino (e decorre ainda) do art. 272.º, n.º 1: basta a simples queixa individualizada para se seguir obrigatoriamente a constituição e interrogatório de arguido, ainda que "sem pés nem cabeça". Nesta parte, o projecto corrige a situação.
A parte que levanta grandes dúvidas, quer quanto à utilidade, quer quanto à necessidade, é a da validação obrigatória da constituição de arguido, quando esta feita por OPC (art. 58.º, n.º 3 do CPP). É que ensina a prática que este tipo de comunicações mais não são do que um "pró forma", sem qualquer controlo substancial, com a desvantagem de produzir trocas de correspondência vazias de sentido. Por outro lado, se às polícias são reconhecidas cada vez maiores capacidades e competências legais para a investigação, este procedimento acaba por ser um manifesto sinal contrário.
"Quantos arguidos existem no CPP da democracia com base em situações que quem está a constituir a pessoa naquele gravoso estado sabe que equivalem a nada? Digam a verdade, por favor!"
Perguntas frontais merecem respostas frontais - ninguém sabe!
Apenas sei que são muitos, mas mesmo muitos.
Esta realidade já seria má se o sistema de justiça fosse célere. É muito pior num sistema em que as pessoas são arguidas durante anos a fio, até verem definida a sua situação.
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