segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Casa da Suplicação LII

Abuso sexual de crianças — crime continuado — crime de trato sucessivo — medida da pena — circunstâncias atenuantes — idade avançada do arguido
1 - Tendo o arguido abusado sexualmente durante dois anos das suas duas netas, menores de 8-10 e 12-14 anos de idade, mais correcto teria sido considerar cada um dos dois crimes, p.p. nos artigos 172º, n.º 1 e 2, 177º, n.º 1, alínea a), do CP, como um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado. No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
2 - A 1ª instância condenou o arguido nas penas parcelares de 10 e 11 anos de prisão e na pena única de 18 anos de prisão, mas não valorizou suficientemente o facto de aquele ter na altura dos factos entre 78 e 80 anos e, agora, 81 anos de idade.
3 - Esta idade avançada, aliada à ausência de antecedentes criminais, embora não constitua motivo suficiente para uma atenuação especial da pena, não pode deixar de constituir uma forte atenuante de carácter geral.
4 - O Código Penal de 1886 previa como circunstância atenuante de carácter geral ter o arguido mais de 70 anos de idade, pois «compreende-se que uma idade avançada, fazendo voltar como que a uma segunda infância, produza sobre a imputabilidade efectivas consequências».
5 - O não ter sido indicada expressamente esta circunstância como atenuante no texto do C. Penal, mercê da nova técnica utilizada a propósito, não lhe retira actualmente o valor atenuativo que acima se analisou.
6 - Uma pena única de 9 anos de prisão (correspondente às penas parcelares de 6 e 7 anos de prisão) já tem uma suficiente duração para evidenciar a gravidade da ilicitude e para satisfazer a prementes necessidades de prevenção geral do crime de abuso sexual de crianças, mas tem uma dimensão mais humanizada, principalmente face à diminuição da culpa que resulta da avançada idade do arguido, com ausência de antecedentes criminais, circunstância essa pouco sopesada na sentença recorrida. Como também não se ponderou que a idade avançada do arguido faz diminuir a necessidade da pena, já que há menor exigência de prevenção especial.
7- E não é demais relembrar que nenhuma pena pode ultrapassar o grau de culpa do arguido, ainda que por vezes haja quem reclame dos tribunais a aplicação da chamada “pena exemplar”.
Ac. do STJ de 3.11.2005, proc. n.º 2952/05-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

Crimes fiscais e contra a Segurança Social — inexistência de inquérito — poderes constitucionais do Ministério Público — punição do crime continuado — suspensão da execução da pena — condição de pagamento das importâncias devidas — constitucionalidade
1 – Nos crimes fiscais e contra a segurança social, cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, a direcção do inquérito, actuando estes sob a directa orientação daquele e os preceitos do RJIFNA e do TGIR não descaracterizam esse poder de direcção, sendo o agente competente da administração na qualidade de órgão de polícia criminal, presumindo legalmente delegada a “prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos”.
2 – Assim, a instauração do processo de averiguações fiscais por parte da respectiva entidade administrativa competente enquanto um acto praticado a coberto da legitimidade do Ministério Público, como também o vem entendendo o Tribunal Constitucional, que teve como constitucionais as normas dos art.ºs 43.º e 44.º do RJIFNA.
O Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito (n.º 1 do art. 270.º do CPP), com excepção dos actos da competência exclusiva do juiz de instrução (art.ºs 268° e 269° do CPP), bem como receber depoimentos ajuramentados, ordenar a efectivação de perícia, assistir a exame susceptível de ofender o pudor da pessoa, ordenar ou autorizar revistas e buscas e quaisquer outros actos que a lei expressamente determinar que sejam presididos ou praticados pelo Ministério Público (n.º 2).
3 – Nesse esquema, não é necessário que o Ministério Público, em concreto, dê qualquer directiva ou ordene qualquer diligência de investigação, salvo quanto à prática de actos de competência exclusiva do Ministério Público ou de diligências de exclusiva competência do juiz de instrução. E a delegação presumida consiste somente na autorização para o exercício de um poder, susceptível de ser avocado a todo o momento.
4 – Não pode falar-se em “administrativização” da fase do inquérito, decorrente da autonomização do chamado processo de averiguações e sua subtracção aos poderes de controlo e fiscalização do M.º P.º. Antes resulta uma maior autonomia da investigação por parte da Administração Fiscal e Segurança Social, que dão início e procedem às competentes averiguações sem necessidade de para tal solicitar a par e passo a autorização do Ministério Público, o que se justifica pelo carácter técnico das matérias em causa, sem o impedir, porém, de exercer as suas competências de direcção do inquérito, sempre que o julgar oportuno.
5 – Se o Tribunal conheceu na medida de pena de todas as questões que lhe competia decidir e não exorbitou desse âmbito; poderia ter errado na escolha e medida da pena, não valorando devidamente todas as circunstâncias do caso, mas então estar-se-ia perante um erro de julgamento e não perante excesso ou omissão de pronúncia.
6 – Se a medida penal abstracta no caso não prevê em alternativa a pena privativa e não privativa da liberdade, não é convocado o art. 70.º do C. Penal.
7 – A punição do crime continuado é encontrada, nos termos do art. 79.º do C. Penal na moldura penal correspondente à conduta mais grave que integra a continuação, mas são tidas em consideração todas as condutas englobadas no crime continuado e não somente a conduta mais grave.
8 – O princípio da igualdade, enquanto limite objectivo da discricionariedade legislativa, não impede que a lei possa estabelecer distinções de tratamento, desde que material, objectiva e razoavelmente fundadas, mas implica que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diversamente o que for diferente. Impõe à lei ordinária a proibição do arbítrio, as discriminações ou diferenciações fundadas em categorias ou situações meramente subjectivas, materialmente infundadas, sem um fundamento sério, sem um sentido legítimo, sem uma fundamentação razoável, segundo os critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes.
9 – Assim, não procede a invocação de inconstitucionalidade das normas dos arts. 11.º, n.º 7, referido ao n.º 8, do RJIFNA e 14.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), traduzida na alegada consagração legal de privilégio indevido para o Estado enquanto credor lesado.
10 - A importância de interesses públicos em causa, constitucionalmente reconhecidos, envolvendo a prossecução de funções fundamentais do Estado em favor da generalidade dos cidadãos, importa fundamento legítimo da adopção da lei pela discriminação positiva do Estado, traduzido na imposição de condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais e dos benefícios obtidos.
11 - A obrigatoriedade da imposição do referido condicionamento (independentemente da verificação da razoabilidade da exigência do pagamento total) não envolve ofensa do princípio da culpa que enforma todo o sistema penal como exigência incontornável do respeito pela eminente dignidade da pessoa humana, não importando a inconstitucionalidade da norma (constante do art. 11.º, n.º 7 do RJIFNA e do art. 14.º, n.º 1 do RGIT, por violação dos arts. 1.º e 27.º da CRP.
12 – E inexiste inconstitucionalidade, por ofensa do art. 13.º da CRP, resultante de tratamento desigual dos arguidos que por dificuldades económicas não possam satisfazer a condição de pagamento das prestações tributárias não entregues e desencaminhadas.
13 - A referida opção legal da obrigatoriedade do condicionamento da suspensão nos aludidos termos não atinge o limite do arbitrário, situando-se ainda na margem de liberdade das opções de política criminal possivelmente reclamadas pela premência da satisfação dos interesses protegidos pela incriminação, reconhecido como é actualmente o papel determinante da política criminal, desde que as respectivas finalidades e proposições se compatibilizem séria e razoavelmente com os interesses, valores e princípios fundamentais com expressão constitucional.
14 - É o que resulta nomeadamente das circunstâncias seguintes:
– o já referido relevo, a nível constitucional, das obrigações tributárias como instrumento para o cumprimento pelo Estado de funções fundamentais;
– a frequência e a amplitude da violação dos deveres fiscais;
– estar-se face a uma imposição legal aplicável a todo e qualquer arguido condenado pelos referidos crimes fiscais;
– tratar-se de prestações tributárias que foram efectivamente recebidas e apropriadas por cada um dos específicos condenados.
15 - Como se tem acentuado, nomeadamente na jurisprudência do TC – sendo embora indiscutível face ao nosso sistema legal que uma eventual prisão por dívidas viola os princípios constitucionais da previsão e da necessidade das restrições dos direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 2, da CRP), bem como o princípio da culpa decorrente da dignidade humana (arts. 1.º e 27.º da CRP) –, a impossibilidade legal da prisão por dívidas não abrange as obrigações não contratuais, derivadas da condenação por ofensa de interesses jurídicos com protecção jurídico-criminal, como é o caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal.
16 - No caso de não pagamento de quantia indemnizatória, a que se condicione a suspensão da execução, a efectivação da prisão em virtude da falta de pagamento dessa quantia não configura, manifestamente, «prisão por dívidas», uma vez que a prisão é cumprida por força da condenação que o Tribunal efectua ao determinar a pena por crime praticado.
Ac. do STJ de 3.11.2005, proc. n.º 2646/05-5, Relator: Cons. Simas Santos

Recorribilidade — âmbito do recurso — sequestro — coação grave — regime de jovem delinquente — atenuação especial da pena
1 – O juízo sobre a admissão do recurso interposto funda-se essencialmente no teor dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP. Admitido o recurso à luz desses normativos que se destinam a resolver a questão da recorribilidade da decisão impugnada. A indagação seguinte já não se prende com a recorribilidade, mas sim com o âmbito do recurso, questão diversa a resolver face ao teor do art. 402.º do mesmo diploma. Com efeito, é o normativo ínsito no n.º 1 desse artigo que define o âmbito do recurso admitido, dispondo que o recurso interposto (admitido) abrange toda a decisão recorrida esses recursos abrangem a totalidade da decisão recorrida, salvo o que dispõe o n.º 2, não sendo de excluir o conhecimento dos crimes punidos até 5 anos, mesmo que o recurso já tenha passado pela Relação.
2 – Com o crime de sequestro visa-se fundamentalmente proteger a liberdade individual, mais propriamente a liberdade física, o direito de se não ser aprisionado, encarcerado ou de qualquer modo fisicamente confinado por determinado período temporal, que relevantemente afecte a liberdade individual de locomoção a certo e determinado espaço.
3 – Cometem esse crime os arguidos que, aproveitando o sentimento de pânico evidenciado pelos ofendidos, os empurraram em direcção ao veículo automóvel determinando a abertura das portas e obrigando todos os ofendidos a acondicionarem-se no banco traseiro, o que estes fizeram, conduzindo o veículo cerca de 45 minutos, tendo trancado as portas quando se aperceberam que um dos ofendidos propusera aos restantes que saíssem da viatura aquando de paragem perante semáforo.
4 – Cometem o crime de coacção agravada, violentando a livre determinação da vontade e a livre expressão da mesma por parte dos ofendidos, os arguidos que, depois daquele sequestro ameaçam os ofendidos com ofensas graves da integridade física e morte os ofendidos para que não participem os crimes de sequestro e de roubo às autoridade, colocando os ofendidos em estado de choque, não tendo nenhum deles ousado apresentar queixa e chegando mesmo a negar reconhecer os arguidos, vindo a retractar-se posteriormente e no âmbito do inquérito, perante o respectivo Magistrado do Ministério Público.
5 - O regime penal especial para jovens delinquentes não é de aplicação automática, devendo o Tribunal equacionar a sua aplicação ao caso concreto se o agente tiver aquela idade. O Tribunal deve começar por ponderar a gravidade do crime cometido, aferida pela medida da pena aplicável, e, depois, só deverá aplicar a atenuação especial a jovens delinquentes quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
6 - Por isso, haverá que apreciar, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e modo de execução do crime e os seus motivos determinantes.
7 - O art. 72.º do C. Penal ao prever a atenuação especial da pena criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que, relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respectiva, diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.
8 - As circunstâncias exemplificativamente enumeradas naquele artigo dão ao juiz critérios mais precisos, mais sólidos e mais facilmente apreensíveis de avaliação dos que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação, mas não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.
Ac. do STJ de 03.11.2005, proc. n.º 2420/05-5, Relator: Cons. Simas Santos

Opção pela pena de multa — burla informática — condução sem carta — rejeição do recurso — manifesta improcedência
1 – Sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta proteja de forma adequada e suficiente os bens jurídicos e assegure a reintegração do agente na sociedade. Se o arguido já cumpriu diversas penas de prisão e está até detido no momento do julgamento, não é adequada a opção pela de multa quanto aos crimes de burla informática e condução sem habilitação legal, crime este que já motivara uma outra condenação.
2 – É manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso.
Supremo Tribunal de Justiça
Ac. do STJ de 03.11.05, poc. n.º 3264/05-5, Relator: Cons. Simas Santos

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