1. Ontem, 15 de Março, Rogério Guilherme Ehrhardt Soares completou 80 anos. Se há homem e se há jurista que - sem renunciar ao tratamento rigoroso e próprio das disciplinas objecto da sua especialidade - concebe e vive o exercício académico como um contributo do discurso jurídico para o diálogo científico e cultural, esse homem e esse jurista é Rogério Soares.
O que primeiro impressiona são, sem dúvida, a elegância e a contenção da sua escrita. Sem recurso ao jargão tradicional dos juristas e sem apelo a uma linguagem complexa que entretanto fez voga, o seu estilo marca, marca inexoravelmente. Lapidar, organizado em frases geralmente curtas, de sintaxe algo elaborada, carregado de referência histórica e de ironia queirosiana, oscila entre a citação de Shakespeare ou de Dante e a evocação de um conto infantil, de um episódio anedótico ou de um dito popular. A exemplaridade das suas sínteses é inigualável: quem seria capaz de reduzir umas lições de Direito Constitucional a umas magras 100 páginas ou um curso de Direito Administrativo a pouco mais do que 400? Páginas que, lidas e relidas, evidenciam um domínio completo do estado coevo da ciência, organizam heuristicamente os capítulos daquele ramo do saber e enunciam uma visão própria - por regra, avessa e adversa à concepção maioritária - que dá resposta congruente aos diferentes problemas postos.
2. A sua bibliografia, vertida numa dúzia de peças escritas de dimensão desigual e de acesso rarefeito, é de uma riqueza inabarcável. Os cursos ou lições existem apenas em versão policopiada, circulando clandestinamente, quase que num circuito "underground". É bem verdade que todos eles - sejam os de Direito Corporativo, Colonial ou Ultramarino, já perdidos no tempo; sejam os de Direito Constitucional ou Administrativo, ainda tão necessários - relevam de uma atitude científica inconformista, que fornece um paradigma e cânones metodológicos alternativos. E que uma tal ciência jurídica - imersa, mas não dissolvida, no condicionalismo histórico, filosófico e social - casa bem com essa despreocupação formal e com essa nota humilde de transitoriedade. Evoco, a propósito, um episódio pessoal, passado em 1987, ainda aluno de Direito Administrativo. Faltando às suas lições, o capítulo final sobre os "vícios do acto administrativo" e sendo essa uma das matérias em que o professor mais inovara, perguntei-lhe, ingenuamente, se as acabaria até ao fim do ano lectivo. Ao que ele me retorquiu com um lacónico sorriso, algures entre a esfinge e o oráculo: "Não. A perfeição é eterna."
3. Esgotada há décadas, a sua obra maior vem a ser a monografia Direito Público e Sociedade Técnica, de 1969. Aí revisita todos os grandes temas de Teoria do Estado e da Constituição, no ambiente específico das sociedades técnicas de massas. Um nova compreensão da esfera pública, a utilização estatal e privada de tecnologias, o senhorio dos grupos e lobbies, o lugar do indivíduo perante um Estado absorvente, o futuro da separação dos poderes. Tudo isso lá figura num português admirável, lançando mão das mais modernas ciências sociais. Esta obra abre caminho ao pensamento constitucional de Lucas Pires ou às exemplares lições de Teoria da Constituição (também policopiadas) do seu discípulo dilecto, Vieira de Andrade, que, nos anos pós-revolucionários, configuraram um verdadeiro repto ao material-positivismo, de raiz marxista, de Gomes Canotilho e de Vital Moreira.
4. A influência de Rogério Soares é ainda mais patente no âmbito do direito administrativo, onde o seu doutoramento (Interesse Público, Legalidade e Mérito, 1955), pontifica como obra avant la lettre, depois completada pela lucidez perfurante das lições de 1978 (parte em Coimbra, parte na Universidade Católica do Porto). Por um lado, inova pelo tratamento constitucional do poder e do direito administrativo - pela busca de um poder executivo independente - em que há-de ser seguido, de modo muito diferenciado, por Vieira de Andrade, Afonso Vaz ou Paulo Otero. Por outro, mais ligado às funções do Estado e à sua organização, herdado do direito corporativo, em que, bastante mais tarde, aparecerão as pisadas de Vital Moreira ou, já mais recentemente, de Pedro Gonçalves. A sua coroa de glória será, porém, a construção de uma teoria integral do acto administrativo, verdadeiro ponto de ruptura epistemológica com a ciência de Marcello Caetano. Só o conceito de acto de Rogério Soares e a sua teorização do "procedimento" permitiram separar o direito administrativo do direito processual administrativo; só esse conceito possibilita a emergência noções como de "relação jurídica-administrativa" ou de construções de superação do paradigma do acto como a de Vasco Pereira da Silva. Não menos importante é a sua concepção da actividade discricionária da administração pública e a presa visível que ela exerceu sobre o pensamento de Sérvulo Correia ou, agora, na mais recente edição do seu curso, sobre Freitas do Amaral.
5. Acima da obra e da sua profícua herança - que muitos teimam em não querer ver -, está o homem. Rogério Soares não é apenas um académico emérito, é um professor fora de muros, um conversador ímpar, um refinado contador de histórias, um cultor da mais subtil e desconcertante ironia. Sempre acompanhado dos clássicos - conhece tão bem as fábulas de La Fontaine como os anseios de Lady Macbeth -, é um homem do seu tempo, incapaz de resistir aos encantos de um "game boy". Se houvesse de escolher o seu mais distinto traço de carácter, escolheria o de profundo e raro conhecedor da "alma humana". Conhece-a, glosa-a, comenta-a, mas não a desvenda. Eis o que, mais do que qualquer outro vinco, perfaz o seu mistério.
POL nº 5469 - Quarta, 16 de Março de 2005
quarta-feira, 16 de março de 2005
Nos oitenta anos de Rogério Soares
Por Paulo C. Rangel
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