quarta-feira, 16 de março de 2005

Nos oitenta anos de Rogério Soares

Por Paulo C. Rangel

1. Ontem, 15 de Março, Rogério Guilherme Ehrhardt Soares completou 80 anos. Se há homem e se há jurista que - sem renunciar ao tratamento ri­go­ro­so e próprio das disciplinas objecto da sua especialidade - concebe e vive o exer­cí­cio académico como um con­tributo do dis­cur­so jurídi­co para o diá­lo­go cien­tí­fi­co e cultural, esse homem e esse jurista é Ro­­­gério Soares.
O que primeiro impressiona são, sem dúvida, a elegân­cia e a contenção da sua escrita. Sem recurso ao jargão tradicional dos juristas e sem apelo a uma linguagem complexa que entretanto fez vo­ga, o seu estilo marca, marca inexo­ra­velmente. Lapidar, orga­ni­zado em fra­ses geralmente curtas, de sintaxe algo elaborada, carregado de re­ferência his­tó­rica e de ironia quei­ro­siana, oscila entre a citação de Shakes­peare ou de Dante e a evoca­ção de um conto infantil, de um episódio anedótico ou de um di­to popular. A exempla­ri­dade das suas sínteses é ini­gua­lá­vel: quem seria capaz de re­du­zir umas lições de Di­reito Constitucional a umas magras 100 páginas ou um curso de Direito Administrativo a pouco mais do que 400? Pá­gi­nas que, lidas e relidas, evi­den­ciam um domínio completo do estado coevo da ciência, organizam heuristica­mente os capítulos daquele ramo do saber e enunciam uma vi­são pró­­pria - por regra, avessa e adversa à con­cep­­ção maioritária - que dá res­­pos­ta congruen­te aos diferentes proble­mas pos­tos.

2. A sua bibliografia, vertida numa dúzia de peças escritas de di­men­são desigual e de acesso rarefeito, é de uma riqueza inabar­cável. Os cursos ou li­ções existem apenas em versão policopiada, circulando clandesti­na­mente, quase que num cir­cui­to "underground". É bem verdade que todos eles - sejam os de Direito Cor­po­rativo, Colonial ou Ultramarino, já perdidos no tempo; sejam os de Di­reito Constitucional ou Administrativo, ainda tão neces­sá­rios - relevam de uma atitude científica incon­formista, que fornece um para­dig­ma e cânones metodológicos alternativos. E que uma tal ciência jurí­di­ca - imersa, mas não dissolvida, no condicionalismo histórico, filosófico e social - casa bem com essa despreocupação formal e com essa nota humilde de tran­si­to­riedade. Evoco, a propósito, um episódio pessoal, passado em 1987, ainda aluno de Direito Administrativo. Fal­­tan­do às suas lições, o capítulo final sobre os "ví­cios do acto administrativo" e sendo essa uma das matérias em que o pro­fes­sor mais inovara, perguntei-lhe, ingenuamente, se as aca­baria até ao fim do ano lec­tivo. Ao que ele me retorquiu com um la­có­ni­co sor­riso, algures en­tre a es­fin­ge e o orá­culo: "Não. A perfeição é eterna."

3. Es­gotada há décadas, a sua obra maior vem a ser a mo­no­gra­fia Direi­to Público e Sociedade Técnica, de 1969. Aí revisita todos os gran­des temas de Teoria do Estado e da Constituição, no ambiente específico das so­cie­dades téc­nicas de massas. Um nova compreensão da esfera pú­bli­­ca, a utilização es­ta­­tal e privada de tecnologias, o senhorio dos grupos e lobbies, o lugar do indi­ví­duo perante um Estado absorvente, o futuro da separa­ção dos poderes. Tudo is­­so lá figura num português admirável, lançando mão das mais modernas ciên­­cias so­ciais. Esta obra abre caminho ao pensamento constitucional de Lu­cas Pires ou às exemplares lições de Teoria da Consti­tui­­ção (também poli­co­pia­das) do seu discípulo dilecto, Vieira de Andrade, que, nos anos pós-revolucio­ná­rios, confi­gu­raram um verdadeiro repto ao material-positivismo, de raiz mar­xista, de Gomes Canotilho e de Vi­tal Moreira.

4. A influência de Rogério Soares é ainda mais patente no âmbito do direito administrativo, onde o seu doutoramento (Interesse Público, Legalidade e Mérito, 1955), pontifica como obra avant la lettre, depois completada pela lucidez perfurante das lições de 1978 (parte em Coimbra, parte na Uni­versi­dade Católica do Porto). Por um lado, inova pelo tratamento cons­ti­­tucional do poder e do direito administrativo - pela busca de um poder executivo indepen­dente - em que há-de ser seguido, de mo­do muito di­ferenciado, por Vieira de Andrade, Afonso Vaz ou Paulo Otero. Por outro, mais ligado às funções do Estado e à sua organização, herdado do direito corporativo, em que, bastante mais tarde, aparecerão as pisadas de Vital Moreira ou, já mais recente­men­te, de Pedro Gonçalves. A sua coroa de glória será, porém, a construção de uma teoria integral do acto administrativo, verdadeiro ponto de ruptura episte­mo­ló­gi­ca com a ciência de Mar­­cello Caetano. Só o conceito de acto de Rogério Soa­res e a sua teorização do "procedimento" permitiram separar o direito adminis­tra­­tivo do direito pro­ces­sual adminis­tra­ti­vo; só esse conceito possibilita a emer­gên­­cia noções como de "rela­ção jurídica-admi­nis­trativa" ou de construções de su­peração do paradigma do acto como a de Vasco Pereira da Silva. Não me­nos im­por­tante é a sua concepção da actividade discricionária da admi­nis­tra­ção pú­blica e a presa visível que ela e­xerceu sobre o pensamento de Sér­­vu­lo Correia ou, agora, na mais recente edi­ção do seu curso, sobre Freitas do Amaral.

5. Acima da obra e da sua profícua herança - que muitos teimam em não querer ver -, está o homem. Rogério Soares não é apenas um académico emérito, é um professor fora de muros, um conversador ímpar, um refinado contador de histórias, um cultor da mais subtil e desconcertante ironia. Sempre acom­pa­nha­do dos clássicos - conhece tão bem as fábulas de La Fontaine como os an­seios de Lady Macbeth -, é um homem do seu tempo, in­ca­paz de resistir aos encantos de um "game boy". Se houvesse de es­colher o seu mais distinto traço de carácter, escolheria o de profundo e raro conhecedor da "alma huma­na". Conhece-a, glosa-a, co­men­ta-a, mas não a desvenda. Eis o que, mais do que qualquer outro vinco, per­faz o seu mis­té­rio.

POL nº 5469 - Quarta, 16 de Março de 2005

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