segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Casa da Suplicação (IV)

Abuso de confiança fiscal — Aplicação da lei no tempo — Apropriação — Suspensão da pena — Constitucionalidade
1 – Se a lei do tempo da prática dos factos (RJFNA) exigia, para a verificação do crime de abuso fiscal, a apropriação em proveito próprio, pelo agente, das contribuições devidas, diversamente do que sucede com a lei actual (RGIT) é convocado o n.º 1 do art. 2.º do C. Penal e não o n.º 4, pois é à luz da lei no momento da prática dos factos que se dever determinar se a conduta é punível; se o não for, já não há lugar à ponderação da aplicabilidade de lei posterior que seria então sempre “desfavorável”.
2 – A apropriação a que se reporta o abuso de confiança fiscal previsto no RJFNA, satisfaz-se com a não entrega de contribuições ao Estado, dando-lhes outro destino, como tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça: se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
3 – O art. 24.º, do RJIFNA (DL n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção do DL n.º 294/93, de 24-11), ao falar em apropriação de prestação tributária que se estava obrigado a entregar ao credor fiscal, não conflitua com o disposto no art. 105.º, do RGIT (Lei n.º 15/01, de 05-06), que lhe sucedeu, uma vez que este último, embora não fale expressamente de apropriação, a ideia permanece no espírito do novo texto, ao acentuar a recusa ilegal de entrega à administração tributária da prestação. Na verdade, se o agente não faz entrega ao fisco das prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, no sentido de que lhes deu destino diferente daquele que era imposto por lei, já que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado (Ac. de 23/04/2003, CJ XXVIII, 1, 234)
4 – As normas dos artigos 11.º n.º 7 do RJIFNA e 14.º n.º 1 do RGIT não são inconstitucionais.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, Proc. n.º 3274/04-5, Relator: Cons. Simas Santos

Crime de tráfico de estupefacientes — medida da pena — perda de veículo
1 – Sendo elevados os graus da ilicitude e da culpa, ressaltando no primeiro aspecto a insistência do arguido na prática criminosa, mesmo depois de uma primeira detenção, o longo período de tempo já provado em que se vem dedicando ao tráfico, e as quantidades já relevantes de droga que lhe foram encontradas, assim como a sua natureza, já que envolvendo as chamadas «drogas duras», portanto de efeitos mais perniciosos para a saúde dos consumidores, sem esquecer que o móbil provado foi o de obter lucros sem trabalhar, numa moldura penal de 4 a 12 anos de prisão, em que o ponto médio se situa nos 8 anos, e para onde, razoavelmente, ante os factos provados, se podia apontar a fixação da pena concreta, a de 6 anos que lhe foi aplicada já valoriza acima do atendível, a falta de antecedentes criminais conhecidos e a «jovem idade» do arguido, ambas de pouco relevo no caso.
2 - Declarado perdido a favor do Estado, um motociclo «por ter sido adquirido com proventos obtidos no tráfico de drogas», tal declaração é legal por respeito pelo disposto no artigo 35.º do DL n.º 15/93, de 22/1, na sua actual redacção, que estatui que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tivessem sido produzidos», o que acontece, segundo o n.º 3 daquele dispositivo, ainda que «nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto», logo, independentemente da propriedade do veículo ser ou não do arguido.
Ac. De 14.10.2004 do STJ, proc. N.º 3204/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira

Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça — irrecorribilidade — demissão
1 – Não é admissível recurso «de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções».
2 – Tal doutrina tem aplicação no caso de o acórdão proferido pela Relação, confirmativo de decisão da primeira instância, quando a medida abstracta da pena correspondente aos crimes, objecto da condenação, não seja superior a oito anos, mesmo que o tribunal da relação tenha reduzido a pena imposta aos recorrentes da decisão da primeira instância, ou aligeirado a pena, nomeadamente substituindo a pena de prisão por pena suspensa.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 2829/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira

Tráfico de estupefacientes — matéria de facto — competência do Supremo Tribunal de Justiça — estrangeiro não residente — pena acessória de expulsão
1 – No actual regime processual penal está fora do âmbito legal do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação, mormente quando, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal recorrido, não se vislumbram outros vícios a que fosse mister dar resposta oficiosamente.
2 – Se não é de subestimar a gravidade do crime que o arguido decidiu cometer – tráfico de droga – importa ter em conta, contudo, que, dentro da relatividade das coisas, não atingindo o caso os limites quantitativos do «grande tráfico», embora a ele indelevelmente ligado, quanto mais não seja, como adjuvante na difusão pretendida, e não se tendo apurado outros factos desfavoráveis sobre a personalidade do arguido – a situação de ignorância que as instâncias deixaram pendente sobre o tema de facto não o pode desfavorecer – não desvalorizando ainda a circunstância de o recorrente não ter antecedentes criminais conhecidos, apesar dos seus actuais 38 anos de idade, enfim, usando de algum optimismo em que a pena de prisão cumpra um dos os seus objectivos primários – essencialmente, a ressocialização – deitando ainda um olhar de comiseração pela criança de 1 ano em quem o pai devia ter pensado antes e não pensou, enfim, tendo em conta que a situação de ilegalidade em que o arguido se encontra em Portugal tem outras vias para além da judicial para ser controlada, concorda-se em que possa ter existido algum excesso no decretamento da pena acessória de expulsão, que não é automático.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 3018/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira

In dubio pro reo — Questão de facto — Presunções naturais
1 – O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
2 – Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.
3 – As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
4 – O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções
5 – O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo. Elas cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto, pelo que aquele princípio constitui o limite àquele recurso.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3274/04-5, Relator: Conselheiro Simas Santos

Tráfico de estupefacientes— co-autor — cúmplice — tráfico de menor gravidade — Atenuação especial da pena — perda de veículo automóvel — medida da pena — crime cometido na prisão
1 – Se um agente monta, a partir do estabelecimento prisional onde se encontrava detido, uma operação de tráfico de estupefacientes, na qual contou com a colaboração de outras pessoas, a actuação do co-arguido que no exterior (fora da cadeia), recebeu, guardou e posteriormente transportou num percurso de mais de 100 Km, mais de meio quilo de heroína, não se traduz em mera cumplicidade, mas sim em co-autoria.
2 – Com efeito, verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum.
3 – E esse co-arguido «por qualquer título recebeu», «proporcionou a outrem», «transportou», e «ilicitamente detive» a droga, assim incorrendo com a sua actuação directa em 4 das situações prevista no n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 15/93.
4 – Estando ainda provado agiu livre, consciente e voluntariamente, de acordo com plano prévio acordado com o co-arguido que estava na prisão – ao qual aderiu – de tráfico de estupefacientes, o que significa que aderiu ao projecto global e dele comparticipou numa actuação essencial à sua concretização: recebeu, transportou, deteve ilegalmente e ia entregar a heroína.
5 – Não se trata no caso de tráfico de menor gravidade, atendendo aos meios utilizados, à modalidade ou nas circunstâncias da acção (implicando a organização de esquema já sofisticado, com o dirigente na cadeia, dois ou mais indivíduos para obter a droga e entregá-la em Coimbra ao co-arguido, transporte para 100 Km, um encontro entre desconhecidos para a entrega da mesma droga) e à qualidade ou na quantidade das plantas ou substâncias (mais de 500 grs de heroína).
6 – Nem se trata de um correio de droga que, recrutado pela sua condição económica precária, recebe uma determinada quantia pré-fixada para efectuar o transporte de determinada quantidade de droga de um sítio para outro, normalmente envolvendo uma situação de importação, pois está assente a adesão ao um plano prévio acordado visando obter lucros que sabia serem ilegítimos.
7 – Não sendo no caso as circunstâncias atinentes à situação pessoal, económica e familiar do arguido, bem como a confissão parcial, com alguma relevância para a descoberta da verdade, o arrependimento e a vontade de reconstruir a sua vida e de adoptar comportamento em conformidade com as regras vigentes, suficientes para diminuir consideravelmente a culpa com que agiu, nem a necessidade da pena, atendendo aos fins de prevenção geral de integração que visa prosseguir, uma vez que o tipo de substância, a sua qualidade e as circunstâncias da acção, postulam acrescidas necessidades nesse domínio, não é de atenuar especialmente a pena.
8 – Mas já justificará esse condicionalismo a fixação da pena concreta em 4 anos e 6 meses de prisão.
9 - Face à redacção do n.º 1 do art. 35.º do DL 15/93 dada pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro vem entendendo o STJ que, na criminalidade punida nesse diploma, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumentos do crime, depende apenas de um requisito em alternativa - que tenham servido, ou que estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma; tratando-se de produtos, a declaração de perda depende tão só da sua natureza de ser um resultado da infracção e que, com a eliminação da 2.ª parte do art. 35.º, se pretendeu ampliar as situações em que a declaração de perda de objectos deverá ocorrer.
10 – Mas tem introduzido elementos moderadores a uma interpretação que conduza a uma aplicação automática do perdimento dos veículos automóveis, aferindo o nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime com recurso à causalidade adequada, sendo exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma, com significação penal relevante, verificada.
11 – E tem convocado o princípio da proporcionalidade, no sentido que a perda do instrumentum sceleris terá de ser equacionada com esse princípio relativamente à importância do facto, de forma a não se ultrapassar a "justa medida".
12 – O veículo mostrou-se essencial em outros domínios que não o mero transporte se serviu para, parado e com os 4 piscas ligados no local combinado, assinalar a sua presença aos dois indivíduos que iam fazer a entrega da droga e, com a janela aberta como combinado, para recolher a droga que foi por aquela lançada e ainda para guardar a droga, levá-la para um depósito temporário, face à impossibilidade de se fazer a entrega no mesmo dia como esteve combinado. Pode, pois, afirmar-se que a utilização do veículo teve um papel importante no esquema de tráfico em que foi envolvido, não ofendendo o seu perdimento o princípio da proporcionalidade.
13 – Se o agente comandou a operação de tráfico a partir da sua cela, mas não está provado que a droga se destinasse à prisão, então não se verifica a agravante qualificativa da al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93, com a qual se quis também proteger aquela comunidade prisional.
14 – Mas essa circunstância deve ser atendida no quadro do art. 71.º do C. Penal, na medida concreta da pena, pois é patente o desprezo a que o agente votou os objectivos da condenação que está a cumprir, como potencia, pelo (mau) exemplo, que os outros presos enveredem pelo mesmo caminho, não só frustrando os objectivos de prevenção, como levando a deixar de lado a sua reinserção, enfim, pondo em causa todo o fim das penas que o sistema prisional é suposto acautelar.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3205/04-5, Relator: Cons. Simas Santos

Homicídio voluntário — Tentativa — regime especial para jovens adultos — medida da pena — atenuação especial da pena — fins das penas
1 - Como está dito e redito, a atenuação especial prevista no Dec.Lei n.º 481/82, de 23/9 não é automática e tem de emergir de um julgamento do caso concreto que incuta na convicção do juiz a crença séria “sérias razões” de que para o arguido resultam vantagens para a sua reinserção. Porém, mesmo que verificadas aquelas condições, há sempre um limite que não pode ser ultrapassado – a defesa do ordenamento jurídico.
2 - O silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios, nomeadamente a alegação de ter confessado os factos ou a demonstração de um qualquer laivo de arrependimento.
3 - A atenuação especial prevista no artigo 72.º do Código Penal, só cabe aplicar em casos especiais em que a imagem global do facto cria situações de tal forma específicas que o caso sai fora das molduras penais normais, já de si pensadas para abrangerem casos de ilicitude e culpa muito diversificados.
4 - A ressocialização é sempre um dos fins associados ao cumprimento de qualquer pena. Mas só funciona, «se possível», isto é, depois da necessária protecção de bens jurídicos, tal como emerge do disposto no artigo 40.º
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3242/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira

Tráfico de estupefacientes — correio da droga — medida da pena
A actividade do arguido, sendo de mero correio, não o situa na linha da frente da actividade traficante, antes, o remetendo para um papel importante na estratégia do tráfico, mas, apesar de tudo, de segundo plano.
Ac. de 21.10.2004 do STJ , proc. n.º3273/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Recurso extraordinário de revisão — assistência obrigatória de advogado — falta de pedido — rejeição
Deve ser rejeitado por falta de pedido o recurso extraordinário de revisão de sentença em que o recorrente formulou ele próprio o pedido e, tendo-lhe sido nomeado defensor, este veio dizer que não havia fundamento para a revisão, mas antes para a descriminalização da conduta em relação a um dos crimes por que foi condenado.
Ac. de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 1262/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa

Tráfico de estupefacientes — correio — medida da pena — rejeição — manifesta improcedência
É manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado, o recurso em que o arguido pede a atenuação especial da pena ou, em alternativa, a sua fixação em 4 anos, quando foi condenado em 4 anos e 6 meses de prisão por ter transportado 3.149,600 grs. de cocaína num voo procedente de Santiago do Chile, via S. Paulo – Brasil e com destino a Espanha, estando provadas apenas, como atenuantes, a confissão (tendo sido apanhado em flagrante delito), o ter-se mostrado arrependido, viver em casa dos progenitores com a mulher e a filha de 9 meses, ser operador de máquinas numa fábrica metalúrgica e ter frequentado o ensino secundário.
Ac de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 2940/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa

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