segunda-feira, 25 de outubro de 2004

A BOA-HORA CÓMICA

2 de Janeiro

Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido - acabo de pagar uma enorme conta no livreiro, e de ser apresentado ao orador que eu mais detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos!
Estas picuinhas todas irritam-me: e como o Ferin não tem novidades, enfio pela espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo da Boa-Hora. À esquerda há uma rampa bordada de vadios e mulheres públicas, nos dias de audiência: um sumidouro público no centro: carros das obras públicas a um canto: do lado direito, uma sentina pública com letreiro por cima - e enfim, como pano de fundo a todo este cenário público de caserna e de alcouce, aí temos o maravilhoso Palácio da Justiça de Lisboa! Ao subir as escadas, acho-me numa espécie de átrio com bancos de pedra em circuito, um rodapé de azulejos gastos, o pavimento de lajes, e um cheiro inquietador de ralé que me faz náuseas. Ao fundo há um portal que dá acesso a uma pequena escada de pedra, até ao claustro; no meio do átrio, duas ou três miseráveis mobílias de mansarda, que os esbirros da lei vão penhorar, e que duas outras pobres mulheres estão velando, enrodilhadas em xales, despenteadas, com sapatos de ourelo, e tendo no ar esmagado alguma coisa de horrível que leva ao Tejo, ao Casal dos Ossos ou à cadeia.
Felizmente que a polícia está de guarda ao desespero que elas esgatanham em si próprias, rasgando os xales mais, dizendo baixo a sua vida lúgubre de ménage, com maridos bêbedos, pancadas, filhos, a casa de prego, o senhorio, e quatro ou cinco libras de cão nos armazéns de provisões.
Sobre um dos bancos, um cego ouve-as chorar as suas grandes dores, e sorri-se, aconselhando meio decilitro de marufo, àquelas três princesas... o marufo ali da Tendinha, que alarga a coragem, e espairece.
Tipos esquálidos que atravessam o átrio, detêm-se olhando as cadeiras coxas, os bancos de cozinha imundos, e os baús pelados como consciências de juízes.
Num dos montões há um retrato a óleo, primitivo, representando um figurão de farda a ouro, colarinhos estrangulados por uma gravata de coleira, manto de Cristo, meia justa - o qual, todo risonho numa barba em passa-piolho, cheira uma flor com dengosidades de fruste, segundo a tradição galante dos estoiradinhos lisboetas do século passado. Mais longe, um espelho de cómoda assenta sobre um lavatório de ferro enferrujado.
Alguns fadistas entram, zangarreando a aravia rútila dos arrabaldes: e por pândega, caricaturando os casacas, vão fazer toilette diante daquele espelhinho de casebre operário, que se envergonha e treme de pudor, por ser trazido assim brutalmente à hasta pública, em meio das chufas cínicas de quem passa. Mas nesse momento uma mulher desce do claustro, ruidosa de gomas e penduricalhos escarlates. Outras a seguem, gesticulando, espaventosas, numa gralhada de codornizes fugidas da gaiola.
Um dos fadistas chega-se:
- Então? - diz ele.
A moça alumia na cara um destes júbilos bestiais de bacante esparvoada, bate as palmas, atira-lhe ao pescoço os braços esticados.
- Aqui estou livre! O juiz estava com telha. Saíram-me só três meses de multa, a tostão.
Há uma alegria que atravessa o âmbito e salpica de nódoas os três grossos montões de mobília - chalaças, risadas, berros: enquanto as outras choram silenciosamente as suas cadeiras empenhadas.
- Saíram-lhe só três meses de multa. Que dito mais flagrante! Como se na Boa-Hora a justiça não passasse duma lotaria!

Subidos oito ou dez degraus da pequena escada de pedra, aparece um pátio quadrado, com toscos arcos que restam do antigo claustro do convento. Nos dias de audiência, uma tropa de polícias, mulheritas do povo, vagabundos, simples flâneurs e informadores de jornal, acumula-se ali numa gralhada de feira; e saltam das palestras revelações de arrepiar os cabelos ou fazer rebentar às gargalhadas. O dia em que por lá passei, fora destinado ao julgamento das parteiras.
Com muito custo, atropelando massas de gente lacrimosa, que se aglomerava pelo corredor que leva à sala de audiência, lá conseguimos captar as atenções dum cavalheiro, o qual, untuoso, trocando o b pelo v e vice-versa, condescende a ouvir os nossos títulos de jornalista interessado na questão... oh!, pelo lado pitoresco simplesmente!
O cego do átrio viera subindo também, pela mão duma rapariguita esguedelhada.
- O senhor escrivão Carvalho, meu senhor?
- Não conheço, meu amigo. E vossemecê que vem fazer aqui?
- Saiba Vossa Senhoria que sou testemunha.
- Testemunha... testemunha ocular?
- Assim, assim...
Lá conseguimos entrar na sala de audiência: é uma casa oblonga, baixa de tectos, e com o pavimento imundo de escarros secos, palitos quebrados e poeira em crostas de meia polegada de espessura. Vai-lhe ao redor um rodapé de azulejos pálidos, recortando vasos de flores sobre a caliça parda das paredes. Uma grade de rampa separa o banco dos réus, do espaço reservado aos curiosos. Entre duas janelas, ao fundo, fica o púlpito do senhor juiz, um pesadão, de cabeça em pêra, sangue nos olhos, a palavra difícil, a elocução atarantada. À direita, os senhores jurados amesendam, num velho banco, a sua sagacidade bronca de hipopótamos. Um deles, grosso, obeso, glabro, com lunetas de tartaruga e olheiras papudas - cinquenta anos de honra em panos crus - é um austero mercador da Rua Augusta, cuja mulher, muito mais nova, há seis anos começa a preferir a esse marido apático de sessenta anos dois rapagões de trinta que há em casa, sob o pseudónimo adorável de caixeiros. À esquerda deste, um outro verde, a suíça dura, a mão peluda, um prognatismo feroz de australiano, parece ir criticando na sala os temperamentos através da factura do calçado, sobre que ele esparge um olho torto, minaz, desorientado, de sapateiro cúpido e facínora. E mais longe quatro têm cara de cretinos e riem vagamente um riso em navalha, escorrido dos beiços lívidos, sem comissuras, imóveis, como o das caraças de pataco.
Ainda um quinto jurado é digno de croquis. Traz um bigodão colado no beiço, o qual se despenha em catarata, até lhe ocultar o queixo e o colarinho. Sob uma tinta lúgubre, ressaem-lhe em pirâmide as maçãs do rosto, acidentadas; duas rochas-tarpeias por onde os globos dos olhos parece que vão precipitar-se: e inquieto, como um malandro feroz que a polícia espicaça, ei-lo corre com a vista a sala inteira, saca do bolso papelinhos sebentos, raspadeiras, canivetes, boquilhas, que fica a mirar, e depois embrulha, e depois guarda, para logo em seguida os tornar a exibir sobre os joelhos, esbugalhando os olhos contra as acusadas, como se aquela camaradagem de infâmia o fascinasse, e o banco onde elas se acurvam estivesse reclamando a intimidade dos fundilhos das suas calças pretas.
E este é o sinédrio de inteligências claras e consciências aplicadas, que decidirá se acaso as tecedeiras de anjos incorreram no crime, picando com estiletes de meio metro os ventres inflados das criadas ladinas, e das chics esposas que sob a aquiescência dos maridos fizeram da fecundidade uma vergonha.

Ficam da esquerda, perto do púlpito do senhor juiz, as carteirinhas destinadas ao ministério público e advogados. A sala é tão estreita, que todos estes funcionários se acotovelam uns aos outros, as rés, advogados, juiz e mais comparsaria da sala, incluindo os jornalistas, que escrevem sobre tiras de almaço as suas impressões. Toda esta família sua, e se permite exalar patchoulis de fábrica própria, a ponto de parecer que a comédia da audiência transmutou de cenário, e que o segundo acto já não decorre no templo da Justiça, senão nuns irmãos unidos que há no largo, com o seu letreiro municipal por cima da porta.
Os Russos dizem: é necessário que a cabana cheire ao dono. E na Boa-Hora assim sucede; a Justiça cheira efectivamente ao tribunal.
Depois do juiz, a fisionomia que mais fere é o delegado, os crocs do bigode recurvos em proa de saveiro, os seus anéis de oiro fosco, a sua falta de vista e a sua beca. Nunca vejo estes togados elegantes, com mãos de bispo, o ar vitorioso, e rescendendo a perfumes de White-rose e Peau-d'Espagne, que a mim mesmo não pergunte se eles irão cantar alguma ária na audiência, tão familiarmente se abraçam, no meu espírito, a noção da justiça oficial contemporânea, com o teatro, que já hoje nos dá da magistratura uma ilusão bem mais emocional.
Entre os advogado, um gordo, baixote, apesunhado, com pequeninas feições perdidas a um canto da sua enormíssima cara macilenta, tem dois olhitos que luzem no fundo duns buracos, sob uns sobrolhos hirsutos, como pedaços de hulha ao pé de dois molhos secos de carqueja. Oh, não tenham medo que haja fogo! Este advogado é de acender na caixa, e nem mesmo a dizer banalidades produz chama.
Um outro é rabulista, ele azougado, com saracoteios maganos de compadre: e os olhos gotejando resina, como duas ameixas engelhadas.
Este defende a esmo os criminosos, mostrando um álbum pelos corredores, à clientela, com as amostrinhas dos discursos, os argumentozinhos, os preços - e levando a garrafa faz-se abatimento. O seu truc é já hoje quase corriqueiro. Começa recordando ao júri as tremendas responsabilidades que impendem dum veredictum leviana ou malevolamente formulado.
Durante os interrogatórios põe-se a estudar as caras dos jurados. Júri em que haja, pelo menos, dois tolos, pertence-lhe - porque este domínio boquiabre um asno, pelo mesmo sistema por que um sapo fascina e estarrece uma doninha!
Ora, num curro de nove jurados, mesmo escolhidos a capricho, a contribuição de dois tolos é duma tal benignidade!... Lombroso disse uma vez que num grupo de seis cidadãos assembleiados para a discussão de coisa pública, quase era certo poder-se arrebanhar aí a sua dúzia e meia de patetas, sem menoscabo à toleima que cada um deles pudesse desenvolver pessoalmente.
O certo é que o meu sacripanta triunfa. Os assassinos passam-lhe todos por bêbedos, os larápios por famintos; e quanto ao adultério... histerismo!
Da sua boca loquaz, amachucada, granizam, jactitando, as frases da defesa, feitas de tudo, sentimentalidades da Biblioteca das Damas, trucs forenses, partidas, trapalhadas. E aquilo admite-se, os juízes sabem, o ministério público sorri-se, todos lhe acham graça -o alma do diabo!, o rabulista!- e indulgente, o tribunal encolhe os ombros e deixa-lhe passar a cambada de clientes, porque se não conseguiu afinal provar o roubo, ou porque não parece ter havido premeditação no assassinato.

A justiça antiga, de gládio e balança, as grandes mamelas turgentes sob o peplum, amachucou-a a Boa-Hora numa caricatura soez de alcoviteira, cúpida e manhosa, que pede cinco tostões por conta das fianças, e vai de porta em porta, e influência em influência, entregar a carta de empenho que faz vergar a consciência dos juízes, e que ao mesmo tempo espapaça a lei, como uma cataplasma de peros, no sentido cobarde do perdão.
A piedade que hoje move a simpatia do homem diante de todas as espécies de crimes, em vez de dirigir exclusivamente sobre as vítimas os seus focos de sensibilidade lírica, nevrótica, excessiva por vezes, teima em abraçar no mesmo jorro também os criminosos, que ela desculpa chamando-lhes revoltados, heróis talvez, larvados, doidos, e procurando enfim explicar, pelo bom lado, os seus impulsos cruéis de bestas-feras.
No nosso tempo, a honra é conforme. Revolta-se a gente aos vinte anos contra coisas que aos sessenta legitima sem a mais leve hesitação de consciência. Um processo caminha até deparar com o dinheiro que o asfixia na. poeira dum arquivo. Tem-se razão, conforme a argúcia do advogado que nos serve. Desmandos imperdoáveis na classe baixa são leviandades apenas na classe média, e daí para cima, qualidades!
Lassa de tudo, sob um democrático e igualitário regime que lhe tirou o carácter, a sociedade de hoje é chata e medíocre, fora dos seus acessos de febre convulsiva, e quase não tem lucidez para demarcar fronteiras entre a desonra e a probidade.
Pranzini e D. Bosco nos parecem igualmente interessantes. No fundo da nossa alma, nenhuma solidez de convicções, nenhuma crença, respeito algum. Por exemplo, a religião serve de escárnio à populaça. A lei é letra morta. Não há aristocracias de classe, impondo-se às rebeliões, como grandes portas brônzeas de fortaleza. E por outro lado, nenuma ilustração, nenhuma cultura a escorar a consciência histerizada por todos estes desmoronamentos!
Ora, desde que a ilusão daquelas sagradas coisas se perde, nós não podemos deixar de pôr a blague ao serviço dos nossos desalentos.
E é singularíssima a impressão que o Tribunal da Boa-Hora já começa a produzir em toda a gente. A princípio, ainda se percebe a distância que medeia entre os magistrados, os réus, e os oficiais de diligências. Porém, pouco a pouco, o ar enturva-se, os olhos vão perdendo a percepção contornada das imagens, baralham-se as figuras, cabriolam -e aparecem depois os réus com as togas dos juízes, os advogados sobre o banco dos réus, os juízes de oficiais de diligências... E enquanto o cego aconselha marufo à sociedade, ouve-se no átrio a voz dos contratadores oferecendo senhas de absolvição para todas as espécies de crimes, mais baratas que na casa, e a gralhada das moças que esbracejam, regougando:
- O juiz estava com telha, ó Daniel! Saíram-me só três meses de multa. Saíram-me, entenderam? Como se na Boa-Hora a justiça fosse uma questão de lotaria!

Fialho de Almeida, Pasquinadas (Jornal dum Vagabundo), 1890

Utilizou-se a edição do Círculo de Leitores, Obras Completas, IV Volume, 1992

Sem comentários: