domingo, 26 de dezembro de 2004

O Pacto da Justiça e o Tempo


«Será pura coincidência. Mas o Prémio da Justiça e da Humanidade, de Voltaire, agora trazido de novo à estampa pela editora Vega, parece surgir destinado propositadamente aos políticos que vão estar empenhados em discutir o pacto de regime para a Justiça (...). Escrito em 1777, quando o autor já tinha 83 anos, o livro é o resultado de um concurso proposto pela Sociedade de Economia de Berna, da qual Voltaire era membro. Os objectivos a atingir seriam «compor e redigir um plano completo e pormenorizado da legislação acerca das matérias criminais (...) de forma a que a brandura da instrução e das penas seja conciliada com a garantia de uma punição pronta e exemplar, e que a sociedade encontre a maior segurança possível para a liberdade e a humanidade.» O desafio proposto a Voltaire, nome literário adoptado por François-Marie Arouet, poderia, perfeitamente, ser o mesmo para quem se envolva num pacto para a Justiça em Portugal. Em primeiro lugar, convém lembrar, diz o autor - um dos expoentes máximos do iluminismo francês - que «as leis mais não fazem do que espelhar a fraqueza dos homens que as fizeram. Tal como estes, elas são variáveis». (...) Naquele tempo, já a questão da prisão preventiva - que será em breve objecto de alterações no âmbito do Código de Processo Penal (CPP) português - fazia correr muita tinta. Dizia Voltaire «Em vários Estados, a forma como se prende um homem para mantê-lo sob domínio parece-se bastante com um ataque de bandidos.» A despeito disso, os juízes encaravam esta medida de coacção apenas como «uma forma segura de conservar sobre o seu domínio o arguido até que chegue a altura de o interrogar e julgar». Uma atitude que Voltaire não compreendia, pois «a prisão é um suplício, por menos tempo que dure». E «é um suplício intolerável quando a ela se é condenado para toda a vida». Igualmente crítico é o olhar do autor sobre a natureza e a força de algumas provas apresentadas em tribunal, sobretudo as testemunhais. Questiona «Será que em todos os casos duas testemunhas iguais, invariáveis nos seus depoimentos, uniformes, bastam para fazer condenar um acusado?» E avança com o exemplo de uma «cabala». Em 1772, populares de Lyon afirmaram ter visto «jovens carregar, dançando e cantando, o cadáver de uma rapariga que tinham violado e assassinado». «Não foi isso deposto na justiça com uma voz unânime?» Tal não impediu, porém, que os juízes acabassem por «reconhecer solenemente na sua sentença que não houvera nem rapariga violada, nem cadáver carregado, nem cantos, nem danças». Para Voltaire, os juízes tinham, neste contexto, um papel fulcral. O de «determinar o valor da testemunha e das rejeições que se lhes deve opor». Sobre o segredo de justiça - instituto polémico que vai ser revisto no nosso CPP - também o autor se pronunciou, perguntando liminarmente «A justiça deve ser secreta?» Para, logo de seguida, responder: «Só o crime é que se esconde.» Isto porque o contrário representaria a vitória da «jurisprudência da Inquisição». Na verdade, «todos os processos secretos parecem-se demasiado com o rastilho que arde imperceptivelmente para fazer explodir a bomba». Relativamente à privação de liberdade dos condenados - ontem como hoje, assunto recorrente - entende-se que, sendo o aprisionamento já uma pena em si mesmo, «deve ser proporcional à dimensão do delito de que o detido é acusado». Havendo «graus para tudo, distinções a fazer em cada caso», uma questão fica no ar «Será que se deve pôr no mesmo cárcere um infeliz devedor insolvente e um celerado fortemente suspeito de um parricídio?» Humanista, admitindo tacitamente a sua tendência para «desculpar demasiado as mães que enjeitam os seus filhos», Voltaire, já naquele tempo, encarava o aborto como escolha última de «vítimas infelizes do amor e da honra, ou antes da vergonha». Para o autor, mais do que punir as «mães infanticidas», melhor seria «dotar os hospitais, onde se podia socorrer qualquer mulher que nele se apresentasse para parir secretamente». (...) Por tudo isto, trata-se de um livro que ainda hoje responde aos reptos da Justiça.»
Licínio Lima, DN, 14Dez04

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