sexta-feira, 15 de março de 2013

O Estado ao ataque...

FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA 
Público - 15/03/2013 - 00:00
Os "recursos dos autarcas" para o Tribunal Constitucional vão desaparecer. São caros e vão ser inúteis
O funcionamento da justiça criminal portuguesa vai modificar-se radicalmente com as leis penais que vão entrar em vigor para a semana.
Em primeiro lugar, a prescrição, tão habitual no nosso panorama judicial criminal, vai praticamente desaparecer. A partir de agora, os prazos de prescrição do procedimento criminal suspendem-se a partir da sentença condenatória em 1.ª instância. Suspensão que pode ir até cinco anos, e em casos de excepcional complexidade do processo, esse prazo será de 10 anos. Mas há mais: no caso de recurso para o Tribunal Constitucional, estes prazos são elevados para o dobro. O que quer dizer que após a sentença da 1.ª instância, o prazo de prescrição poderá estar suspenso vinte anos, findos os quais a contagem do tempo de prescrição será retomada.
É caso para dizer que os "recursos dos autarcas" para o Tribunal Constitucional vão desaparecer. Porque além de caros, passarão a ser absolutamente inúteis. A medida é claramente positiva, embora os novos prazos sejam excessivamente longos e quase eliminem o instituto da prescrição.
Verdadeiramente revolucionária em termos de alteração da filosofia do sistema é o facto de as declarações dos arguidos prestadas nas fases iniciais do processo passarem a ser consideradas na fase de julgamento, desde que tenham sido prestadas perante uma autoridade judiciária - juiz ou ministério público - e na presença de advogado. O que quer dizer que, se o arguido se recusar a prestar declarações no julgamento, o tribunal poderá aproveitar aquilo que declarou antes no processo. Não poderá considerar tais declarações como uma confissão integral e sem reservas, prescindindo da restante prova, mas o tribunal poderá dar-lhes o valor que entender, o que quer dizer que vamos ter muito mais condenações do que até aqui.
Esta "alteração cirúrgica" vai ao coração do nosso sistema penal, já que acaba com o princípio essencial de que a prova a ser considerada na sentença é a que for produzida em julgamento. Uma alteração que exige muitos cuidados: espera-se que não haja dúvidas que as declarações prestadas perante os funcionários do Ministério Público não sejam consideradas como prestadas perante uma "autoridade judiciária". Espera-se que antes de prestar essas declarações e como a lei passa a impor, os arguidos sejam devidamente informados que, se não exercerem o seu direito ao silêncio, tudo o que declararem pode vir a ser utilizado contra eles, mesmo que faltem ou não prestem declarações no julgamento. Espera-se também que a Ordem dos Advogados chame a atenção de todos os advogados para a importância e gravidade desta alteração legal e para a necessidade de os advogados conferenciarem sempre com o seus clientes antes de qualquer interrogatório, esclarecendo-os sobre as consequências das declarações que vão prestar. Até agora, as declarações prestadas no processo antes do julgamento não tinham qualquer valor, pelo que se os arguidos nada declarassem em julgamento, apesar de terem confessado a prática do crime porque estavam acusados em fase anterior, se não houvesse qualquer outra prova, eram absolvidos.
Outra medida cirúrgica é a que impõe que a maior parte dos processos-crime em caso de flagrante delito sejam julgados em processo sumário, com a natural diminuição dos direitos de defesa dos arguidos. Não serão julgados no prazo de 48 horas, como alguns pretendiam, mas no prazo de cerca de um mês. Esta medida dificilmente será exequível dado o grau de empanturramento dos nossos tribunais criminais de 1.ª instância, que não conseguirão escoar tantos processos. Muito provavelmente, as inevitáveis resistências sistémicas e a própria realidade acabarão por impor-se à lei...
Graves e lamentáveis são as alterações da lei que, por um lado, acabam com a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de condenações dos tribunais da Relação que apliquem penas de prisão inferiores a cinco anos e, por outro, permitem o recurso para o mesmo Supremo de absolvições dos tribunais da Relação, se na 1.ª instância tiver havido condenação em pena superior a cinco anos. O Estado é muito cioso do seu poder de punir e só confia nos seus próprios tribunais quando condenam, mas não quando absolvem...
Por último, os furtos de bens ocorridos em estabelecimentos comerciais de coisas expostas para venda ao público de valor inferior a € 102,00 e que sejam recuperadas passam a crimes de natureza particular, não bastando aos comerciantes apresentarem queixa, tendo de constituir advogado no processo e promover o andamento do mesmo em vez de, como actualmente, andarem "a reboque" do Ministério Público. São os clássicos processos de furtos nos supermercados que tanta exposição mediática têm tido e que agora passam a ser - parcialmente - suportados pelos queixosos.
Estas alterações das leis penais têm aspectos positivos e negativos, mas seguramente vão mudar a vida de muitos portugueses.
Advogado. Escreve à sexta-feira ftmota@netcabo.pt

1 comentário:

Manuel de Castro disse...

Um bom post, sucinto e claro!

"O Estado é muito cioso do seu poder de punir e só confia nos seus próprios tribunais quando condenam, mas não quando absolvem..." - não será isto assim devido ao facto de na criminalidade complexa haver muito mais absolvições que condenações? Dá que pensar, não é?