Quando o governo decide que uma parte dos subsídios de férias (a que teria sido retirada caso o Tribunal Constitucional não tivesse impedido) só será paga em novembro, quando as férias acabaram há muito, só podemos concluir uma coisa: que o Estado está com problemas de tesouraria e não tem condições de pagar agora o que é devido aos funcionários públicos. Acontece que o primeiro-ministro já deixou claro que não é disso que se trata. Há dinheiro para pagar.
Não tendo qualquer efeito no único défice que conta – o do fim do ano -, resta a possibilidade de explicar este abuso, que o Presidente aceitou, como sempre, acelerando mesmo a promulgação da lei que o permite, com mais uma birra de Vítor Gaspar contra a decisão do Tribunal Constitucional. Ou então, com uma habilidade contabilística para martelar as contas trimestrais e assim passar a ideia de que as coisas estão melhores do que realmente estão. O que me parece absurdo demais para ser verdade. Até Vítor Gaspar há de saber que existe um país fora do seu computador portátil.
Seja uma ou outra a razão, esta decisão é um ato de prepotência e irresponsabilidade. As famílias e os contribuintes fazem, como as empresas e o Estado, planeamento financeiro. Têm despesas para pagar. Têm dívidas a saldar. Agora, mais do que nunca. E, com toda a legitimidade, contavam, desde que o TC decidiu chumbar o corte dos subsídios, com este dinheiro para cumprir os seus deveres. Esta cativação do seu salário – porque é disso que realmente se trata – complica ainda mais a situação de quem já perdeu, nos dois últimos anos, uma parte significativa dos seus rendimentos. É que para muitos o subsídio de férias é um momento de acertar contas. E, sem ganho nenhum para os cofres públicos, isso é posto em causa.
Mas ela tem também um efeito na economia. Para o hotelaria e restauração o mês de junho é, com o natal, o melhor momento de negócio. Em muitos casos, um momento que só pode acontecer no verão. E isso tem como resultado a habitual queda de desemprego – graças ao emprego sazonal – durante uns meses. Os subsídios de férias significavam, em junho, a entrada de muito dinheiro na economia. Dinheiro que se reproduz. Com a crise aguda em que vivemos, significava evitar a falência de muitas pequenas empresas e a perda de emprego de muitos trabalhadores.
Ao adiar o pagamento deste subsídio o governo piora ainda mais a situação económica de pequenos negócios – como se não tivesse bastado o aumento do IVA -, que não aguentam mais prejuízos até novembro. Acaba por levar a que alguns dos poucos que ainda podem fazer férias desistam de o fazer, com efeitos no turismo. Para mostrar ao Tribunal Constitucional que não engolem a sua decisão? Para punir os funcionários públicos? Para pequenos jogos contabilísticos a pensar na 8ª avaliação da troika sem qualquer relação com a realidade? Haverá limites para a irresponsabilidade e infantilidade de Vítor Gaspar? E haverá limites para o apoio diligente que o Presidente vai dando a todas as asneiras que faz?
A greve dos professores foi por razões laborais. E é justo que assim seja. As suas e de todos os funcionários públicos, tratados como malandros por este governo. Só corresponde à defesa das funções sociais do Estado, onde a educação está incluída, na medida em que essas funções não se cumprem sem profissionais para as levar a cabo. E na medida em que os ataques preferenciais aos funcionários públicos correspondem ao preconceito ideológico que este governo tem contra as funções que eles desempenham.
Defender os professores deste ataque não significa achar que a maioria dos professores tem, em geral, em todos os restantes assuntos, razão. Os professores são tão egoístas e solidários como qualquer outra classe. Muitos se queixarão dos funcionários da CP quando estes fazem greve. Dizendo, provavelmente, que as suas greves não deviam prejudicar os outros. Assim como muitos trabalhadores da CP que fazem por vezes greves estarão indignados com os professores pelos prejuízos que causaram aos seus filhos. A velha solidariedade de classe já teve melhores dias. E isso ajuda a explicar porque perdem os trabalhadores, de dia para dia, os seus direitos.
Não faço, por isso, textos laudatórios à classe docente. Nem, como tenho lido em tanto lado, generalizações insultuosas. Limito-me a analisar as razões desta luta e a dar-lhes razão. E, sendo consequente, a defender o direito de fazerem a greve mais eficaz possível. Mesmo que ela me prejudique.
É o mesmo raciocínio que tenho com Mário Nogueira. Escrevi, recentemente no “Expresso”, sobre o olhar que do líder da Fenprof tem em relação à escola pública e como, na minha opinião, ele é, no fundamental, muito semelhante ao de Nuno Crato. Mas também nesta matéria, não me baralho. A minha opinião sobre Nogueira, e sobre a sua razoável incapacidade em manter um discurso político mais abrangente que mobilize o resto da sociedade em defesa dos professores, não muda um milímetro a minha posição sobre a greve. Pelo contrário, compreendo bem o objetivo das dezenas de ataques, mais simulados ou mais enfurecidos, que têm sido dirigidos a Nogueira. Não podendo atacar os 90% de professores que fizeram greve, concentram-se as baterias no rosto mais visível de uma contestação que contou com o apoio de todos os sindicatos. O que se pretende atacar não é a apenas esta greve e os professores. É o sindicalismo, a própria instituição da greve e, de uma forma mais geral, qualquer forma de resistência eficaz às medidas deste governo.
Uma das principais criticas que tenho lido em relação a Mário Nogueira é o facto de não dar aulas. O populismo pega com facilidade. Pega com políticos e também pega com sindicalistas. Curiosamente, ninguém faz este género de objeções a dirigentes de associações patronais, a bastonários de ordens profissionais ou a dezenas de dirigentes de ONG. Uma federação das dimensões da Fernprof (uma das maiores estruturas sindicais do País, com associados espalhados por todo o território e com um grau de complexidade na sua gestão muito razoável) não se dirige nas horas vagas.
Esta acusação feita com recorrência aos dirigentes sindicais, que nunca aparece em relação a nenhuma outra atividade associativa, só pode resultar de uma de duas coisas: ou de um completo desconhecimento do conjunto de atividades desenvolvidas pelos sindicatos ou da tentativa de criar tais constrangimentos à atividade sindical que, na prática, ela seja inviável. Na maior parte do que tenho lido, a propósito da Fenprof (e só, não sei porquê, em relação à Fenprof), é o segundo caso.
O melhor exemplo foi dado pelo líder da JSD (o mesmo que defende o fim da da saúde e da educação tendencialmente gratuitas e que afirmou não se incomodar com a quantidade de jovens que estão a emigrar), que exigiu ontem uma conveniente investigação ao financiamento dos sindicatos da educação (que, ao contrário da sua “jota”, vivem apenas das quotas dos seus associados). Quem se mete com o governo leva, é a tradução jorgecoelhista desta proposta vinda de quem vive mal com a liberdade sindical e o direito à greve. Quem faz este tipo ataque é a favor do direito à greve se ele não for exercido, a favor do sindicalismo livre se ele não for viável e a favor da concertação social se ela resultar em acordos em que só um dos lados tem uma palavra a dizer.
Se a crítica fosse à falta de democracia interna em muitos sindicatos, que têm estatutos bloqueados e a expressão da oposição muito dificultada, eu subscreveria. Avisando, no entanto, que os sindicatos dos professores até são daqueles onde essa critica é menos válida e que a eleição de Mário Nogueira como líder da Fenprof foi indiscutivelmente democrática. Se fosse ao afastamento de muitos sindicalistas, por demasiado tempo, em relação aos seus locais de trabalho, eu assinaria por baixo. Se fosse sobre a excessiva partidarização de muitos sindicatos, também. Mas a critica parte de um pressuposto demagógico: o de que é possível dirigir grandes sindicatos em horário pós-laboral. Ou seja, ter estruturas amadoras a negociar com instituições públicas e associações patronais ultraprofissionais. Quem defende isto quer sindicatos fracos. E não acredita que eles desempenham um papel central na democracia e que, para o desempenhar, precisem de recursos materiais e humanos.
A outra critica tem a ver com o recurso à greve. Ela vai variando, conforme o contexto. A greve geral é inaceitável porque quer fazer cair um governo eleito. A greve dos estivadores era inaceitável porque prejudicava a economia. As greves da função pública são inaceitáveis porque prejudicam os utentes e resultam de privilégios. A greve dos transportes é inaceitável porque impede os outros de trabalhar. A greve é, no fundo, sempre inaceitável. Mas note-se que, quem o diz, deixa sempre claro que defende o direito à greve, instituído em todas as democracias. Desde que nunca seja realmente exercido. Esgotados todos os argumentos, abriu a época do tiro ao Nogueira. Como se esta greve fosse sua. Ele é do PCP, logo a greve é do PCP. Com 90% de adesão e o apoio de todos os sindicatos a coisa é difícil de vender. Entre os grevistas estarão seguramente eleitores de todos os partidos e gente que não pode ver Mário Nogueira nem pintado. Ou as pessoas julgam que os professores são todos uns idiotas, fáceis de instrumentalizar, ou perceberão que Nogueira apenas se limitou a dar expressão a um sentimento geral que o ultrapassa em muito.
Por fim, é uma forma de diabolizar qualquer tipo de contestação ao governo. Tal como acontece com as greves, não me lembro de nenhuma forma minimamente eficaz de resistência às gravíssimas medidas tomadas por este executivo que não tivesse sido acusada de oportunista, pouco cívica ou antidemocrática. Se se faz greve prejudica-se o País. Se se fazem manifestações, são os comunistas e bloquistas do costume. Se se interrompe a intervenção de um ministro, viola-se a liberdade de expressão. Há sempre uma razão qualquer para não discutir as razões que levam a uma determinada forma de luta e ficarmos a debater a legitimidade dessa forma de luta. Porque quem ouvia defendia a violência? Claro que não. Porque as pessoas perceberam que estavam a ser manipuladas por alguém que as tentava virar contra o exercício democrático do protesto, transformando-o em coisa ilegítima ou mesmo criminosa. E assim dividir os brasileiros, conter a dimensão dos protestos e garantir que tudo ficava na mesma.
É a isso mesmo que assistimos, em Portugal, sempre que qualquer forma de luta pode dar sinais de ser eficaz: seja por causa da ansiedade dos alunos, seja por causa dos prejuízos para economia, seja pelo ódio a um dirigente sindical em particular ou seja por pequenos focos de violência, quer-se manipular a opinião pública para que ela aceite, em silêncio, tudo o que lhe é imposto. Dizendo, claro, que até se é contra as medidas. O problema é que haja alguém que se atreva a resistir a elas de forma consequente e a dar assim, aos restantes cidadãos, um “mau” exemplo. Há que os isolar e colocar na fogueira mediática. Agora é Mário Nogueira. Amanhã será outro que dê a cara por qualquer combate que ponha em causa esta aviltante gestão do discurso da inevitabilidade. O Brasil assiste às maiores manifestações das últimas décadas. Na rua, milhares de pessoas, sobretudo jovens, contestam as prioridades do governo de Dilma Roussef. O rastilho, se é possível identificá-lo, foi o aumento das tarifas de transportes públicos. E, a partir daí, a contestação à orgia de gastos com a organização do Mundial de Futebol e a indignação com a violência policial.
Não deixa de ser perturbante que um país que viveu, nos últimos 15 anos, um autêntico milagre económico e que viu milhões de pessoas passar da pobreza para a classe média mostre este súbito grau de indignação. Como pode um país que vive com péssimos serviços públicos desde sempre, com uma vida urbana insuportável, com índices de criminalidade assustadores e com graus de pobreza indignos acordar repentinamente para velhos problemas quando, apesar de tudo, a sua situação é melhor do que nunca? Como pode o mesmo País que se entusiasmou com a “Tropa de Elite” indignar-se agora com a atuação da polícia militar perante os manifestantes? Como pode um povo que vive soterrado em corrupção espantar-se com as derrapagens na preparação do Mundial de Futebol? Como pode um povo tido como alienado pela bola e o carnaval ganhar tal grau de exigência que pede que o dinheiro vá antes para saúde e educação?
Há quem pense que a razão destas manifestações seja o abrandamento do crescimento económico e a evidência de que o governo está, perante esta conjuntura, a fazer as apostas erradas. Parece-me demasiado simplista para a dimensão das manifestações em causa.
Na realidade, o crescimento económico e algumas políticas sociais mínimas, mas bem sucedidas, da última década, mudaram a realidade social brasileira. Um país composto por uma pequena elite milionária e uma multidão de miseráveis passou a ter uma pujante classe média. E a classe média é a chave da exigência democrática. Sem a autonomia financeira da burguesia e sem a dependência social dos pobres, sem os privilégios dos ricos e o desespero dos miseráveis, sempre foi ela a linha avançada da defesa do Estado Social, da transparência na política e da democracia. E a classe média brasileira cresceu. Cresceu muito.
Com o crescimento da classe média, que é quem se está a manifestar nas grandes cidades, a democracia amadureceu. Ficou mais exigente. O PT já não se pode ficar pela mera distribuição de dinheiro, que o milagre económico permitiu. Nem pode lidar com a contestação como os coroneis e ditadores do passado lidavam com o próprio PT. Os brasileiros estão preparados, porque têm hoje mais formação, informação e ambição, para passar para outra fase: a do desenvolvimento sustentado, a da democracia plena, a de serviços públicos de qualidade, a de um Estado que respeita as liberdades públicas e combate a corrupção, a de uma polícia que se rege pela lei e pelo respeito pelos direitos humanos. E não aceita calado que o mesmo Estado que esbanja dinheiro no Mundial aumente o preço dos transportes públicos. Quer que a riqueza seja canalizada para o futuro e não para os bolsos de milionários e corruptos, os maiores beneficiários de obras faraónicas que deixam pouco para os investimentos que realmente distribuem a riqueza por todos: a saúde, a educação, os transportes e infraestruturas públicas.
Aos novos brasileiros já não chegam os subsídios contra a pobreza. Já não chega a bebedeira do Mundial e dos Jogos Olímpicos e a festa do carnaval. Já não chega pão e circo. Já não chega terem dinheiro para comprar carro. Já não chega almoçar e jantar. Já não chega o acesso à educação e à saúde. Querem cidades onde seja possível viver com o mínimo de qualidade. Querem transportes públicos para todos (mesmo que muitos dos que se manifestem não os usem). Querem escolas de qualidade e um serviço de saúde público confiável. Querem uma polícia civil e civilizada. Querem uma classe política decente. Querem, no fundo, um país onde eles próprios tenham lugar. Porque a classe média não pode pagar os serviços privados que os ricos usam nem está disposta a viver como os pobres. Foi sempre a sua posição intermédia que pressionou, em todo os países desenvolvidos, para a criação e crescimento de um verdadeiro Estado Social, de uma Escola Pública de qualidade e de um serviço público de saúde para todos. É por isso que é idiota acreditar que se pode criar um Estado Social apenas para pobres. Nunca tal existiu. Porque aos mais pobres falta a capacidade reivindicativa para o defender. Só a aliança social entre classes médias e classes baixas o pode garantir.
Lula conseguiu, no meio de muitos erros e escândalos, dar o primeiro salto. Dilma não está a conseguir dar o segundo e dedica-se a alimentar a velha elite, que sempre viveu bem com a miséria do país, e nova elite “petista”, que tomou conta do Estado para proveito próprio. E os brasileiros parecem sentir, quando o tempo das vacas gordas está a chegar ao fim, que ou conseguem agora conquistar um grau de desenvolvimento diferente ou perderão tudo o que conquistaram. O que está a acontecer no Brasil é bom sinal. A nova classe média brasileira quer obrigar o poder político a garantir o futuro de um país onde ela tenha lugar quando houver menos dinheiro. E quer impedir que o dinheiro se esfume em foguetório e bons negócios para uns poucos.
Quando olhamos para Europa e vemos o processo inverso, com a destruição da classe média e a degradação da exigência dos povos, percebemos a tragédia que podemos estar a viver. Enquanto turcos e brasileiros exigem o que há dez anos nem lhes passaria pela cabeça, na Europa aceita-se o que há dez anos seria impensável tolerar. Não são, ao contrário do que se tem dito, os custos do Estado Social e dos serviços públicos de qualidade a razão para este recuo. É o aumento da desigualdade, a consequente degradação das condições de vida da classe média europeia e a alteração da correlação de forças sociais que permite este retrocesso político. Assim como é a redução da desigualdade (mesmo que o Brasil nunca tenha conhecido tantos milionários), o consequente crescimento da classe média e a alteração da correlação de forças sociais que permite a maior exigência de turcos e brasileiros.
Não é possível conquistar mais democracia sem lutar por uma redistribuição mais igualitária da riqueza, na qual o Estado Social e os serviços públicos desempenham um papel central. Não, a questão não é apenas saber se há mais ou menos dinheiro. O Brasil não teria crescido se não tivesse distribuído um pouco melhor a riqueza e não tivesse criado um mercado interno pujante. E não estaria a exigir transportes públicos decentes e uma gestão transparente dos dinheiros do Estado se não tivesse distribuído o seu dinheiro por uma nova classe média, mais informada e exigente.
O nosso Estado Social não está a definhar por falta de dinheiro para o financiar. Está a definhar porque a crescente desigualdade económica na Europa está a enfraquecer a sua principal base de apoio: a classe média. Se permitirmos que este processo continue espera-nos o passado brasileiro. Um passado onde a democracia era uma ficção. Onde a inexistência de uma classe média forte dava às elites e ao Estado que as servia um poder discricionário. É por isso que a luta central é por mais igualdade. A única que garante uma maioria social que trave os abusos, defenda a democracia e exija a dignidade.
O Brasil vive um momento fundamental da sua história: ou dá agora o salto ou volta para trás. A Europa vive um momento fundamental da sua história: ou trava agora a queda ou perde o que conquistou. E a chave, nos dois lados, é a classe média. Quem a trata como privilegiada, perante a dificuldade dos pobres, não percebe que está a criar o caldo social e político em que os pobres nunca deixarão de o ser.
Nuno Crato recusou a proposta de passar o exame de ontem para dia 20. Convocou todos os professores e houve mesmo, segundo relatos dos sindicatos, uma escola onde foram chamados dezenas de professores para vigiar o exame de um só aluno. Noutras, o exame realizou-se na cantina, para poupar nos professores, violando a regra que apenas permite 20 alunos por sala. Até terapeutas da fala, formadores e professores da própria disciplina terão sido chamados para vigiar. Mensagens de telemóvel do exterior com quem estava a fazer o exame, atrasos no começo da prova, alunos fechados à chave nas salas, inexistência de secretariado de exames ou ausência de vigilantes coadjuvantes. Tudo a léguas da normalidade prometida.
O ministro dirigiu-se ao país, no domingo, para dizer que estavam criadas as condições para realizar o exame com toda a tranquilidade. Estava apostado em fazer da ansiedade dos alunos uma arma no braço de ferro com os professores. O resultado está à vista. Quase um terço de estudantes não conseguiu realizar o exame, o que, tendo em conta que todos os professores estavam convocados e que nem dez mil eram necessários, demonstra uma esmagadora adesão à greve. Alguns estudantes viram as condições em que fizeram o exame perturbadas por alunos que, não o podendo fazer, queriam garantir que mais ninguém o fazia.
Já foi marcada nova prova para 2 de Julho. Ou seja, do ponto de vista prático, Crato tem o mesmo problema que teria se adiasse o exame: foi obrigado a encontrar uma nova data, coisa que dizia ser impossível.
Mas Crato tem um problema agravado: como os alunos que não fizeram o exame vão concorrer às mesmas vagas nas universidades do que os que o fizeram, serão avaliados por exames diferentes. Isso cria uma situação de injustiça (as provas nunca têm o mesmo grau de dificuldade) que alunos e pais não deixarão de contestar (já o começaram a fazer). Ao ignorar a ausência de condições para realizar este exame, ao recusar a proposta do adiamento do exame para dia 20 (em que a greve seria impossível) e ao teimar no braço de ferro, Nuno Crato enfiou-se num imbróglio sem saída. Julgava que a chantagem sobre os professores funcionaria e esperava tirar daí dividendos políticos. Não funcionou. Tudo o que fizesse agora para resolver a asneira que cometeu acabaria por criar novos problemas. A isto, num político, chama-se de incompetência.
Não tenho dúvidas que os próximos dias serão usados pelo governo e seus comentadores para responsabilizar os professores por esta confusão sem remédio. E que muitos dos que ainda consideram a greve um mero protesto simbólico, que não deve ter qualquer repercussão prática, acompanharão esta conversa. Não tem razão quem o tente fazer. Mas, mesmo que tivesse, de nada serviria. Quem decidiu manter o exame para ontem foi Crato. Quem tem de responder por tamanha irresponsabilidade é Crato. Quem arrisca a sua credibilidade política em demonstrações de força corre este risco: se a força não for suficiente sai da contenda mais fraco do que estava. Assim ficou Nuno Crato.
Perante a possibilidade dos estudantes fazerem um exame mais tarde (porque, como é evidente, acabarão por ter de o fazer), Nuno Crato, em vez de negociar com os professores o conteúdo das medidas que levaram a esta greve, tentou negociar a própria greve. Mudava a data do exame de hoje se os professores se comprometessem a não fazer mais greves. Nuno Crato não percebeu que o objetivo da greve é obrigar o governo a negociar, não a data dos exames, mas as gravíssimas medidas que unilateralmente impôs aos professores e aos funcionários públicos? Percebeu muito bem. Mas também percebeu que a ansiedade dos estudantes e pais rende. E, à custa da do conflito, quer ganhar uns pontos na sua popularidade. Não me espanta. Apesar de não o parecer, Nuno Crato é um dos ministros mais politiqueiros deste governo.
Crato, com um coro de comentadores que acham excelente o direito à greve desde que seja inócuo, queixa-se da instabilidade que está a ser causada nas escolas. Querem falar de instabilidade? Podemos falar da que ele próprio está a causar quando, sozinho, decidiu suspender o programa de matemática que comprovadamente melhores resultados conseguiu nas escolas. Porque ele não gosta do programa e longe vão os tempos em que o colunista Crato criticava o centralismo autoritário do Ministério da Educação. Estamos a meio de junho e os professores de matemática não sabem que programa vão dar para o ano. Ainda não há manuais e logo se irá improvisar. Isto é a instabilidade que me preocupa porque sou dos que pensam que a escola serve, antes de tudo, para ensinar. Só depois para avaliar.
Instabilidade nas escolas? Mas haverá maior instabilidade do que aquela que é causada pelo terror que Crato espalhou nas escolas, com milhares de professores a desconhecerem em absoluto quanto tempo faltará para que fiquem desempregados? Julgará o governo que isso não se sente nas salas de aula?
O governo quer falar do prejuízo para os estudantes? E que tal falarmos da redução de verbas para alimentação de alunos desfavorecidos, que hoje experimentam a fome na sala de aula por causa da criminosa política de austeridade? Ou do aumento do número de alunos por turma, que torna o acompanhamento aos estudantes com mais dificuldades numa impossibilidade. Ou do ataque ao enriquecimento curricular, que deixará milhares de famílias sem saber o que fazer aos seus filhos quando estes saírem das aulas. O governo quer falar de prejuízos para a educação e para o País? E que tal falarmos dos 40% de estudantes que, indo fazer os exames do 12º ano, já sabem que não querem concorrer à Universidade? Um percentagem sem precedentes na nossa história recente que se explica pelas dificuldades financeiras das famílias, incapazes de comportarem os estudos por mais um ano que seja. O governo quer falar de ansiedade? Falemos da sua tentativa de adiar o pagamento dos subsídios aos funcionários públicos, violando uma decisão do Tribunal Constitucional e não permitindo que estes saibam se podem pagar dívidas, como podem gerir o seu orçamento familiar ou se irão de férias.
Pode um governo que espalha o medo, a ansiedade e a dúvida permanentes em toda a sociedade usar a ansiedade de estudantes e pais por causa de um exame em seu favor? Pode. Porque a hipocrisia não tem limites.
Por dever de solidariedade com quem resiste à arbitrariedade, compreendo que entre o risco do desemprego e um exame, os professores escolham defender o seu posto de trabalho. Mesmo que isso me cause, como pai, ansiedade. Porque sei que os prejuízos que este governo está a causar ao País e à Escola Pública são incomensuravelmente superiores aos que sejam causados por esta greve. Porque sei que a escola que Crato está a construir e aquela que ele está a destruir são assuntos bem mais relevantes do que a data de um exame. Porque sei que a infinita irresponsabilidade deste governo é bem mais destrutiva do que uma greve a um exame.
Provavelmente Nuno Crato vai conseguir, através do esquema de convocar todos os professores e da redução drástica das exigências que sempre existiram para a vigilância às provas, realizar, com uma pequeníssima minoria de professores que não adiram à greve, muitos exames. A questão é se pode continuar a ser ministro com toda a comunidade escolar contra ele.
Atualização: a estratégia de Nuno Crato, de virar os estudantes contra os professores grevistas, está a falhar. Os estudantes manifestam-se, sim, mas contra a trapalhada do Ministério da Educação, que cria a situação de haver alunos com exames e outros sem os poderem fazer. Em Braga, houve mesmo estudantes que invadiram as únicas sete salas (de 23 previstas) onde decorriam exames. E de todos os relatos que chegam a revolta é contra o Ministério e não contra os professores. É que os professores têm uma vantagem em relação a Nuno Crato: estão na escola e contactam com os seus alunos. E têm outra: não fazem parte de um governo que manda os jovens emigrar.
O governo grego decidiu encerrar a televisão pública. A decisão foi tomada à tarde e aplicada à noite. Como se a Grécia estivesse a assistir a golpe de Estado. Ironia das ironias, a única interrupção, até esta semana, das emissões da ERT aconteceu durante a ocupação alemã. Segunda-feira, o sinal foi cortado por forças policiais. A ordem veio da troika, que se comporta como um governo ocupante.
O porta-voz do governo grego, Simos Kedikoglou, tentou justificar o injustificável: “A ERT é um caso de extraordinária falta de transparência e de incrível esbanjamento.” E concluiu, o corajoso: “Isso acaba agora”. Quem oiça este populista elouquecido acredita que a Grécia tem um governo novo, que se deparou com um país em mau estado por culpas alheias. Pois a Nova Democracia e o PASOK governam a Grécia há décadas. Se há esbanjamento, e é capaz de haver, se há falta de transparência, e costuma haver em tudo onde a ND e o PASOK tenham metido a pata, a responsabilidade é sua. Foram suas as administrações, foram suas as políticas. E “isso” não acaba agora. A forma grosseira como esta medida foi tomada apenas prova que “isso” continua como sempre. O mesmo desrespeito pelo Estado, a mesma incompetência, a mesma falta de respeito pelos cidadãos.
O comportamento de ocupante da troika só é possível porque a Grécia, como outros países intervencionados, é dirigida por gente sem coluna vertebral. Que viveu da banditagem e hoje entrega o seu país a quem, através da chantagem sobre todo um povo, a mantenha no poder. O encerramento da ERT ficará como símbolo da insuportável degradação das democracias europeias. E de uma União incapaz de compreender que a humilhação dos povos só lhe pode trazer a desgraça. Se esta é o “projeto europeu” que temos de salvar, que morra depressa. E que, com a sua misericordiosa morte, se salve a Europa e a democracia.
Esta coluna regressa na próxima segunda-feira
No discurso do 10 de junho, o Presidente da República concentrou a sua intervenção no “pós-troika”. Já aqui disse o que pensava sobre o assunto: discutir o que fazer depois ignorando o que se está a fazer agora é uma forma habilidosa de demissão das responsabilidades políticas de cada um. O futuro de Portugal está a decidir-se agora e não é indiferente ao que se possa fazer no futuro os erros que, numa altura tão sensível, sejam agora cometidos.
Cavaco Silva concentrou grande parte da sua intervenção na agricultura. A agricultura é um excelente tema para discutir o futuro próximo e o passado recente de Portugal. Porque foi nela que sentiu de forma mais violenta os erros cometidos na integração europeia – de que Cavaco Silva foi apenas o estreante que deu o mote para os governos seguintes -, a função cumprida pelos fundos estruturais, a cegueira do poder político e do modelo de desenvolvimento em que apostou, os efeitos do mercado único europeu para os países periféricos e os efeitos devastadores do euro na nossa economia. E é também o melhor exemplo de como sair desta crise, já que tem como principal característica a fraca incorporação, para a produção, de bens importados. Recordo que as exportações nacionais incorporam, em média, 40% de importações. Na agricultura e nos sectores ligados à floresta incorporam apenas 27%. Diria mesmo, apesar de não ser esse o tema desta crónica, que seria o sector que mais ganharia com o fim do euro ou a saída de Portugal da moeda única.
Mas o que Cavaco Silva queria era “contrariar algumas ideias feitas”. E percebemos imediatamente ao que vinha. É ao que vem sempre: defender-se de críticas, falar dele próprio fingindo que fala do País. É sabido que uma das maiores críticas que se faz ao legado cavaquista é exatamente no sector da agricultura e pescas, cujo peso na economia era visto, na altura, como sinal de um país atrasado. E Cavaco quis pintar um retrato diferente. Escolhendo cirurgicamente os números que o poderiam socorrer e os indicadores que pudessem contrariar o que se nota à vista desarmada.
Concentro-me nos dados que nos são exibidos pelo recente estudo “25 anos de Portugal Europeu” (cuja leitura aconselho), do insuspeito Augusto Mateus e da ainda mais insuspeita Fundação Francisco Manuel dos Santos. Aí, pode observar-se que, ao contrário do que aconteceu noutros sectores, este foi o único cuja produtividade divergiu em relação à média comunitária. Entre 1986 e 2008 o Valor Acrescentado Bruto gerado pelo sector primário passou de 10% para 2%. Portugal passou de 7º para 12º lugar na representatividade económica do sector (agricultura, silvicultura e pescas). Houve uma queda do volume de mão obra usada (que Cavaco quis traduzir numa maior competitividade que não se verificou) para metade. Entre 1989 e 2009 o número de explorações agrícolas caiu 50%. Muito bem, ficaram maiores. Mas a superfície agrícola utilizada também caiu 9%. A capacidade da frota pesqueira caiu para metade e desapareceram quatro quintos das embarcações de pesca sem motor.
Entre 1986 e 2008, o aumento real da produção agrícola ficou abaixo dos 25% e na pesca caiu 7%. Portugal manteve-se a meio da tabela europeia no crescimento de produção alimentar mas agravou bastante a taxa de cobertura das importações pelas exportações de bens alimentares. Ela era de 43% em 1990 e passou para os 32% em 2010. Na Europa dos 27, só o Reino Unido está pior. Em 1986 importávamos 35% do que comíamos. Em 2007, importamos 50%. Porque, com as alterações do consumo, passamos a consumir coisas que não produzíamos? Não. Porque passamos a importar produtos em que éramos praticamente autossuficientes: hortaliça, fruta, carne e leite. E em 2007, Portugal importava mais de quatro quintos do peixe, oleaginosas e cereais que consumia.
Sim, o tema da agricultura é excelente para discutir porque aceitámos ser financiados para não produzir, numa visão distorcida do que deveria ser a modernização deste sector. Sim, é excelente para falarmos do que foi o desastroso ordenamento do território, a destruição do mundo rural e a desertificação do interior. Sim, é excelente para provar o crónico desequilíbrio de poderes na União Europeia, de que a PAC é apenas um dos exemplos mais escandalosos. Sim, é excelente para discutir os efeitos de uma moeda forte, que torna a importação mais interessante do que a produção para exportar e que arrasou com a competitividade externa de um País que ainda tinha de fazer muito para viver num mercado aberto. Sim, é um excelente tópico para discutir os efeitos que a nossa permanência no euro, nas atuais circunstâncias, terá para a nossa economia. E para determinarmos quais são os sectores onde temos de apostar.
A agricultura só não é um bom tema para Cavaco Silva puxar dos galões dos seus 10 anos de tempo, oportunidades e dinheiro perdidos. Não foi, longe disso, o único responsável pelos números que aqui deixei. Mas foi o primeiro a ignorar a insustentabilidade de um País que desistia de produzir bens transacionáveis. Que se entregava a uma insuportável dependência alimentar. Que se virava quase exclusivamente para os serviços (muitos deles sem acrescentarem valor ao que era produzido) e para a construção em obras públicas (que, sendo precisa, foi muito para além das nossas necessidades quando o dinheiro que chegava em barda nos permitiria desenvolver as nossas atividades produtivas) e na habitação (que, através do financiamento público aos pedidos de empréstimos para compra de casa por jovens e ao absoluto desprezo pelo mercado de arrendamento e a reabilitação, contribui de forma decisiva para o endividamento privado). Foi o primeiro, mas não o único, a ter uma posição acrítica das políticas europeias, que ainda hoje domina a vida política portuguesa. A resumir toda a discussão do papel de Portugal na Europa aos montantes dos fundos estruturais que se encarregou de estourar como se não houvesse amanhã.
Com habilidades estatísticas, Cavaco Silva quis que nos esquecêssemos das suas responsabilidades políticas. De como o que diz hoje é em tudo o oposto do que fez ontem. Escolheu mal o tema. O que aconteceu à nossa agricultura é o melhor retrato de todos os erros que cometemos na nossa integração europeia. E Cavaco Silva, que teve uma década para fazer as escolhas certas, o seu principal protagonista.
O 10 de junho, recordando a morte de Camões nas vésperas do domínio filipino, não assinala, de facto, nenhum acontecimento que esteja na memória coletiva dos portugueses. É uma data criada pelo poder republicano, em defesa do Império e dos mitos nacionais de grandeza, e reinventada e amplificada pela ditadura, que lhe acrescentou o elogio fascista à “raça”. É o dia do poder, não necessariamente do poder democrático. É a celebração do poder, não necessariamente da democracia. Pior: é uma data que só cumpriu a sua verdadeira função durante a ditadura. E as suas comemorações são o retrato disso mesmo: longe do povo, o poder troca comendas entre si. É natural que seja a data predileta do atual Presidente.
As comendas e condecorações são os restos de uma sociedade aristocrática adaptados à República. Compreendo que um intelectual, um cientista ou um jornalista goste de ser reconhecido pelos seus pares. Mesmo sabendo que as razões desse reconhecimento até podem não ser justas. Também compreendo que goste de ver o seu trabalho reconhecido por aqueles a quem ele se destina. Mesmo sabendo que o podem recohecer por razões diferentes às por si desejadas. Custa-me mais perceber a vontade de ver o seu trabalho reconhecido pelo poder político, através dum Presidente, seja ele quem for.
Dirão: não, o reconhecimento vem de toda a comunidade representada pelo chefe de Estado. Simbolicamente, é verdade. Mas não o é de facto. E os símbolos só são relevantes na medida em que tenham uma relação com os factos.
Basta olhar para a lista de pessoas que já receberam estas distinções para o perceber. Entre os comendadores da República temos dezenas de “zés das medalhas”, que subiram à custa de esquemas e foram comprando os favores do poder político com apoios financeiros a partidos e candidatos. Gente mais ou menos obscura de quem a comunidade dificilmente se pode orgulhar. E também alguns artistas cuja relevância apenas resulta do apoio político que deram, a dada altura, a um determinado candidato. Se a comenda faz a honra do comendador, então o comendador também desonra a comenda. No “Dia do Comendador”, intelectuais orgânicos do regime, políticos-banqueiros, autarcas corruptos, patos bravos espertalhões e membros vitalícios das mais diversas comissões de honra misturam-se com empresários honestos, artistas competentes, escritores talentosos e jornalistas independentes, todos demasiado vaidosos para se esquivarem a estas cerimónias fúnebres, em que Fernando Ruas não se distingue de Nuno Júdice e Hélder Bataglia se confunde com José Gomes Ferreira. Tal como existem, estas distinções limitam-se afagar a vaidade de quem aspira ao estatuto de “personalidade” ou à eternidade com certificado público. E a juntar o trigo e o joio. Julgam os homenageados que lhes é prestado um tributo. Pelo contrário, são eles que prestam tributo ao poder que lhes pendura umas bugigangas ao peito. E que espera, em troca deste alimento para o ego, que se mantenham mansamente “respeitáveis” para merecerem o elogio de quem manda.
*Título retirado de “Inventário”, de Alexandre O”Neill, ele próprio feito, depois da sua morte, Grande Oficial da Ordem Militar de Sant”Iago da Espada.
Desculpem não me concentrar no que José Eduardo dos Santos disse sobre os negócios com Portugal, Brasil e, seja lá qual for o interesse, Israel. Não tenho negócios em Angola e esse não é o assunto que mais me comove. Prefiro olhar para o que disse o Presidente sobre o seu próprio governo e a vida política e social angolana.
Sobre isto, José Eduardo dos Santos disse três coisas. Que luta contra a pobreza, está a construir um Estado Social e que essa pobreza resulta da herança colonial. Que combate a corrupção. E que os protestos que existem são de umas poucas centenas de jovens que não conseguiram ter sucesso na sua vida profissional e académica.
Sendo verdade que Portugal não deixou, na sua miserável colonização, mais do que pobreza, ressentimento e quase nenhumas infraestruturas, passaram 40 anos. Sim, houve a guerra civil. Mas ela já terminou há algum tempo. Angola é um dos países com mais recursos em África. Teve um crescimento impressionante e dinheiro é coisa que não lhe falta. Apesar de produzir 1,7 milhões de barris de petróleo por dia, estava, em 2010, em 146º lugar, num total de 169 países, no relatório do PNUD. E, apesar deste enorme atraso, gasta mais dinheiro em formação militar do que no ensino básico. O crescimento económico angolano, como todos sabem, resultou em muito pouco para a maioria da população. Ele traduziu-se quase exclusivamente num enriquecimento pornográfico de uma pequeníssima franja da população. Quase toda ligada ao regime.
E isto permite falar do segundo ponto. O combate à corrupção. A não ser que a família de José Eduardo dos Santos tenha fortuna antiga desconhecida, como se explica a concentração de riqueza nos seus próprios filhos se não através do favorecimento descarado do Estado? Como pode o Presidente, sem se rir (por acaso até acho que se riu), dizer que há uma punição de quem fica com o que não lhe pertence quando a sua família é o mais claro exemplo dessa apropriação ilegítima?
Todos sabem que quem queira fazer negócios em Angola tem que dar dinheiro a ganhar à sua filha Isabel dos Santos. Que esta começou, ainda muito jovem, num negócio milionário de saneamento público, em Luanda, e nunca mais parou. Que é dona de meio país. Que este prodígio empresarial tem negócios, em Angola, Portugal e por esse mundo fora, no petróleo, nos cimentos, na banca, na comunicação social, na hotelaria, nos diamantes, nas telecomunicações. Que, com apenas 40 anos, tem uma fortuna de pelo menos dois mil milhões de dólares, é a 736ª pessoa mais rica do mundo, a 31ª de África e a primeira de Angola. Tudo, evidentemente, por talento próprio. Mas é coisa que corre no sangue da família. Os outros dois filhos do Presidente compram órgãos de comunicação como fossem ao mercado e dedicam-se com especial afinco aos investimentos televisivos angolanos, com a preciosa ajuda da TPA.
Não pode, no entanto, dizer-se que a família Dos Santos seja gananciosa. Manuel Vicente, o seu vice, tem uma sociedade com o ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente, general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa,” e o general Leopoldino Fragoso do Nascimento, na empresa Nazaki Oil & Gaz, que detém um terço dos blocos petrolíferos de pré-sal 9 e 21 e que se prepara para vender à Sonangol. Isto, sem esquecer os seus generais mais queridos, que também não se queixam da vida e torram o dinheiro dos angolanos em Portugal, na Europa e nos EUA. Seguramente toda esta gente soube poupar os seus magros salários no funcionalismo público. Este é o Estado Social angolano. Distribui, é verdade, a riqueza. Por familiares, amigos, generais, quadros do MPLA, membros do governo. Se sobrarem umas poucas migalhas talvez fique alguma coisa para Angola.
Para ser mais claro: a corrupção em Angola tem um rosto. É o rosto que ontem vimos na SIC. É esta, e não a péssima herança colonial, a razão da miséria angolana. A não ser, claro, que a herança a que o Presidente se refere seja a do nepotismo e compadrio. Aí sim, teremos de reconhecer a nossa culpa: José Eduardo dos Santos é o legítimo herdeiro do pior da nossa cultura. Mas pode orgulhar-se de ter refinado muito a arte de bem roubar e ter dado, nesta matéria, novos mundos ao Mundo.
Sobre os jovens que não se integraram na vida profissional e académica, talvez esteja a falar dos professores em greve por causa de salários em atraso, porque o dinheiro que a família Dos Santos e seus amigos gastam não chega para todos. Ou talvez dos camponeses assassinados nas zonas diamantíferas da Lunda Norte, com a conivência das forças policiais. Ou de Emiliano Catumbela, de 22 anos, detido por ter participado numa tentativa da vigília e que entretanto foi barbaramente torturado pela polícia. Uma vigília que recordava Isaías Cassule e António Alves Kamulingue, dois ativistas desaparecidos há um ano depois de terem organizado uma manifestação de guardas presidenciais e veteranos de guerra, devido a queixas de salários e pensões por pagar. Ou dos moradores do bairro da Areia Branca, junto à marginal de Luanda, que foram escorraçados pela polícia e viram as suas cinco mil casas demolidas em três dias, sem saberem qual será o seu próprio destino. Porque com tanto dinheiro para gastar a elite angolana quer as boas vistas para si própria. Note-se que todos os casos referidos não aconteceram nos últimos anos. Não aconteceram nos últimos meses. São um sucinto resumo, apenas com alguns casos, do mês passado. Todos os meses, mês após mês, ano após ano, estes jovens que não singraram na vida profissional sentem o que é a “estabilidade política e social em Angola”.
Era sobre tudo isto que eu gostava de ter ouvido José Eduardo dos Santos falar. Essa entrevista não ouvi. E é para falar destas coisas que jornalistas fazem entrevistas. Para incomodar os de dentro e os de fora. Desculpem a minha falta de patriotismo. Por esquecer os importantes negócios que “os portugueses” podem fazer em Angola e que Isabel dos Santos e meia dúzia de protegidos do Presidente podem fazer em Portugal.
Nos arredores de Istambul, num gigantesco comício do AKP, de Recep Tayyip Erdogan, não me senti nem no Médio Oriente nem na Europa. Essa ambiguidade é, aliás, a identidade da Turquia. Ao meu lado, havia um casal em que a mulher estava de rosto coberto, apenas com os olhos à vista. À minha frente, uma jovem de classe média exibia os seus cabelos louros pintados e as suas calças justas. É melhor, nesta matéria, não simplificar. Tendo nascido dos movimentos islamistas, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) não tem correspondência com o islamismo político dos países árabes ou do Irão. Porque a Turquia é sempre um caso à parte. Em Istambul, podemos ver, a passear na rua, mulheres de rosto coberto e drag queens. Há movimentos religiosos fanáticos e uma movida gay. As campanhas eleitorais são semelhantes às ocidentais e a caridade muçulmana também faz o seu trabalho político.
A laicidade do Estado turco não corresponde, nunca correspondeu, a um processo democrático. Foi imposta à força pelo fundador da República Turca Mustafa Kemal Ataturk, de uma forma que apenas tem paralelo com o Xá Reza Pahlavi, do Irão. Tratou-se de um processo de secularização radical forçada de toda a sociedade. Com regras sobre a indumentária, forçando estudantes e funcionários públicos a abandonar roupas típicas do Médio Oriente e a europeizarem-se. Em 1925, foi aprovada a “lei do chapéu”, que impunha o uso de chapéus dos “países civilizados”. Em 1935 a lei foi estendida ao resto da roupa. A imposição de um novo alfabeto, a reinvenção da história da Turquia, a perseguição à liberdade religiosa e um poder sufocante do exército e de uma justiça dependente do poder político fazem parte da tradição turca que muitos, no Ocidente, confundem com laicidade e democracia. A ditadura (ou democracia musculada) turca, que quando não era de partido único apenas simulou o pluripartidarismo, foi, durante décadas, tutelada pela elite kemalista, baseada num nacionalismo xenófobo, num totalitarismo cultural e num poder asfixiante do Estado. Até aos anos 90, os militares punham e depunham governos. Os tribunais ilegalizavam partidos e impediam candidatos de concorrer a eleições.
A chegada de Erdogan ao poder foi uma lufada de ar fresco. Em dez anos, desmilitarizou, sempre numa tensão perigosa, o regime. Retirou aos juízes o poder discricionário de limitar a democracia turca. Destronou parte da elite económica, umbilicalmente ligada ao poder político. Até as relações com os curdos tiveram, com altos e baixos, se não uma pacificação, pelo menos um pouco mais de moderação, com um forte investimento no Curdistão turco. O que não espanta. Tendo como principal elemento identitário a religião, e não o nacionalismo radical, a ponte era mais fácil de fazer.
Por outro lado, Erdogan modernizou a economia turca. A Turquia viveu, na última década, o seu período de ouro, com um extraordinário desenvolvimento económico. Sendo de direita, conservador nos costumes e liberal na economia, o AKP retirou o Estado da economia de forma socialmente insensível. O que ajuda a explicar uma das partes da contestação de que vai sendo alvo.
Na política externa, Erdogan deu todos os sinais à Europa da sua real vontade, bem maior do que a dos seus antecessores nacionalistas, de integrar a União Europeia. Sinais a que a Europa, em má hora, não respondeu. Ficamos todos a perder: Turquia, Europa e Médio Oriente. Transformou o país, graças à sua melhor relação com as restantes nações muçulmanas, numa potência diplomática incontornável, na região mais complicada do planeta. E até temperou as tensas relações com o vizinho grego.
Mas, acima de tudo, deu sinais de que era possível um movimento islamista transforma-se numa espécie de democracia-cristã muçulmana (paralelo demasiado livre, que me perdoarão). Aquilo que poderia ser um exemplo para a Irmandade Muçulmana, no Egipto, o Hamas, na Palestina e, acima de tudo, o Hezbollah, no Líbano. Estando bem longe das minhas convicções políticas em todos os domínios, o AKP foi, até certo momento, um ator fundamental na normalização democrática da Turquia.
Também é bom ter cuidado quando se fala da oposição institucional turca (os movimentos cívicos são outra coisa). O Partido Republicano do Povo (CHP), o mais importante oponente do AKP, supostamente de centro-esquerda e em tempos partido único, e a extrema-direita nacionalista do MHP, são tudo menos exemplos de respeito pela democracia e pelos direitos cívicos. Muito do que está a acontecer por estes dias aconteceria, com igual ou pior brutalidade, no tempo em que a oposição laica tinha o poder. A cultura kamalista pode ser laica, mais nunca foi, para além da fachada, democrática. O hábito de fazer cair governos através da ação do exército, a repressão da oposição, o regime de partido único e a brutalidade com os curdos está no seu sinistro currículo.
Mesmo o suposto feminismo da oposição deve ser relativizado. As deputadas não podiam usar lenço – houve mesmo uma que foi insultada quando, por sua vontade, o fez. Mas só havia 4% de mulheres no Parlamento. Mais do que os direitos das mulheres, o que estava em causa era o poder kemalista, que abominava qualquer sinal do poder religioso, que o punha em causa. A mesma lógica que levava os nacionalistas a proibir qualquer referência pública ao genocídio arménio e fazia da questão curda um tabu (os próprios curdos não têm direito a esse nome e são, se a memória não me falha, chamados de “turcos das montanhas”).
O início desta revolta, no Parque Gezi, foi, claro, apenas o detonador de um mal-estar. Se fosse apenas aquilo, a contestação não se teria espalhado a todo o País, incluindo à menos cosmopolita Ancara e a Esmirna. Mas não podia haver melhor símbolo das contradições do governo de Erdogan: a destruição de um espaço público para construir um centro comercial e uma mesquita. A imposição autoritária da vontade do poder em nome da nova e da velha Turquia. Do dinheiro e da religião. E o esmagamento dos protestos, escondido por uma comunicação social dominada pelo regime.
Este é, se me permitem, o fascínio da Turquia. Não é apenas não ser nem Europa nem Médio Oriente. É nada ser tão linear como parece. É toda sua história recente condensar a sua condição híbrida, numa sucessões de movimentos contraditórios: a secularização da sociedade impôs-se com um Estado forte e militarizado, a liberalização da sua economia foi feita por um governo conservador e religioso. Tudo contradiz as dicotomias fáceis, que põem a liberdade, o mercado e a laicidade, de um lado, e a ditadura, o Estado na economia e a religião, do outro. É sempre tudo mais complicado.
E é essa complexidade que faz com que, nos protestos, se junte a esquerda comunista e a extrema-direita nacionalista. Movimentos de tipo “ocupa” e islamistas. Porque a questão da islamização é apenas uma pequena parte do problema. Se quisermos, é apenas a velha parte do problema. Parece existir uma confluência de agendas – direitos sociais, liberdades cívicas, pressões sobre a comunicação social, concentração de poder, resistência à islamização do País, perda de influência externa evidenciada pela guerra civil na Siria. Também pesará o cansaço (mesmo na base de apoio do AKP) com um poder quase absoluto, que venceu três eleições consecutivas e para o qual a oposição política, demasiado heterogénea, não consegue encontrar alternativa.
Mas a questão central parece ser, antes de tudo, aquilo a que o analista político turco Bülent Kenes, citado por Jorge Almeida Fernandes, no “Público”, chamou de “intoxicação do poder”. Entre os muitos sinais de arrogância, está a tentativa de rever a Constituição para transformar a Turquia num regime presidencialista, garantindo assim, depois da candidatura de Erdogan à Presidência, a perpetuação do seu poder pessoal, o que ajuda a explicar algumas dissensões internas no próprio AKP. Em defesa dos direitos dos manifestantes tem estado Abdullah Gül, Presidente eleito com o apoio do AKP, no poder. Mandou retirar a polícia da Praça Taksim e deixou recados ao governo. Também o número dois do governo, Bülent Arinç, pediu desculpa à população pelos erros do Governo nesta crise. Mesmo assim, e é importante ter isso em conta, o partido de Erdogan continua popular nas sondagens. Parece haver uma maioria silenciosa para quem estas manifestações e os abusos que as justificaram dizem pouco.
Mas mesmo a indignação com os abusos de poder, num país que vive com eles desde sempre, é sinal de que a Turquia mudou na última década. O poder do AKP, que esmaga sem dó nem piedade os protestos que o contestam e tomou conta de todo o aparelho de Estado, acabou, ao desestruturar o poder militar e a tradição centralista e antidemocrática kemalista, para garantir o seu próprio domínio da vida política e social turca, por criar as condições para que os seus próprios abusos não fossem tolerados.
Quem veja na Turquia uma continuação da “Primavera Árabe” só pode ficar mais baralhado. O que está a acontecer na Turquia são, em simultâneo, as dores crescimento de uma democracia; a resistência aos abusos de quem conseguiu garantir para si, graças a essa democratização, um poder quase absoluto; os conflitos que uma sociedade cada vez mais capitalista naturalmente vive; e, em simultâneo, a velha tensão entre uma laicidade radical e o islamismo político.
Mas, acima de tudo, de forma violenta e extraordinária, a Turquia está a mostrar que mudou. Não mudou apenas por causa de Erdogan. E mudou mais do que Erdogan queria. Mas essa mudança, onde ele desempenhou um papel central, faz com que o próprio Erdogan não possa governar como gostaria. As manifestações e a sangrenta repressão que se abateu sobre elas podem fazer parecer que a Turquia está a recuar. É, na minha opinião, exatamente o contrário. Ela está a avançar. Com sofrimento e de forma confusa. Como é sempre a mudança. E é essa mudança que travará a brutal repressão que Erdogan, intoxicado pelo poder, impõe aos que lutam pela democracia plena.
Expresso OnLine | Sábado, 22 Junho 2013
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