sexta-feira, 1 de março de 2013

O segredo e a confiança

FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA 
Público - 01/03/2013 - 00:00
No topo do Ministério Público, é essencial existir absoluta confiança
Tenho pouca simpatia pelos segredos. Não porque não os saiba ou me custe guardá-los mas porque, muitas vezes, servem para calar e esconder o que devia ser conhecido. No caso da justiça criminal, frequentemente, servem para esconder a falta de progresso nas investigações, quando não a total inactividade processual ou coisas ainda piores. As prescrições, por exemplo, beneficiam do segredo de justiça. Normalmente, os grandes defensores do segredo de justiça são os advogados dos arguidos "poderosos" que visam proteger, naturalmente, os interesses dos seus clientes. Que nem sempre coincidirão com os interesses da justiça ou da sociedade em geral.
Acresce que a preocupação com a violação do segredo de justiça é selectiva: uma violação que devia ter sido devidamente investigada foi a que permitiu a alguns dos implicados no processo "Face Oculta" saberem das escutas de que eram alvo e mudarem de telefones. Tanto quanto se sabe, a investigação deu em nada.
Acresce que, numa sociedade democrática, a transparência é, em princípio, uma virtude. E quanto mais soubermos, quanto mais a informação circular livremente, melhor poderemos actuar e fazer escolhas.
Por isso nunca consegui aderir às excitações periódicas contra os jornalistas que divulgavam dados de processos que estavam em segredo de justiça. Porque aos jornalistas, na posse desses dados, não lhes cabia ocultá-los e porque as revelações ou as eventuais violações do segredo de justiça - se exceptuarmos o caso já clássico da revelação num matutino de uma busca que se ia realizar nesse dia à tarde - nenhumas consequências tiveram a nível da eficácia da investigação. Sendo certo que as cruzadas purificadoras são sempre de desconfiar. Em nenhum dos país do mundo, em que exista o segredo e justiça, deixaram de existir violações do mesmo. Faz parte do mundo da justiça.
No entanto, a violação do segredo de justiça tem sido apontada, por diversas personalidades, como um dos mais graves problema da Justiça portuguesa. Neste momento, as criticas à violação do segredo de justiça no nosso país já atingiram mesmo um nível transnacional e inédito: a Procuradoria-Geral de Angola protestou esta semana "veementemente" contra a forma "despudorada e desavergonhada" como em Portugal tem sido violado sistematicamente o segredo de justiça, nomeadamente em casos que envolvem cidadãos angolanos.
Acresce a este peculiar panorama, o facto de estar em curso uma auditoria, ordenada pela Procuradora-Geral da República, aos inquéritos-crime dos últimos dois anos que tenham sido objecto de eventuais violações do segredo de justiça, de forma a apurar como e onde ocorreram as violações e como evitá-las de futuro; devendo, naturalmente e uma vez mais, estudar-se o que se passa lá pelo estrangeiro.
Uma medida que foi saudada por toda a gente e que parece apontar um caminho novo e mais positivo do que tinha sido trilhado até hoje: em vez de se procurar punir os jornalistas, visa-se implementar sistemas que evitem a chegada aos jornalistas das informações que estão a coberto do segredo de justiça. Por analogia com o comércio da droga, em vez de se perseguir o dealer final, pretende-se estancar a produção. O que, como é evidente, faz todo o sentido.
Anunciada em 4 de Janeiro, esperemos que a auditoria esteja a chegar ao fim dos seus trabalhos sob pena de se desacreditar, tornando-se em mais uma das comissões e inquéritos sem fim que abundam no nosso país. E seria muito desagradável qualquer dia termos notícias sobre o que passa na auditoria, através de fugas ao segredo da mesma...
Na verdade, há um lado nas violações do segredo de justiça que é efectivamente perturbante e que consiste no facto de serem os próprios guardiães do segredo que o violam e de uma forma que parece selectiva. Claro que sempre houve e haverá advogados que, obedecendo a estratégias de defesa, fornecem informações "secretas" a jornalistas, mas o mais preocupante é saber-se - sem nunca se poder provar - que serão também magistrados ou funcionários judiciais que violam os seus deveres funcionais e que numa atitude dúplice investigam e divulgam o que não deviam divulgar.
E, por isso mesmo, me parece muito saudável a atitude da procuradora-geral da República de querer saber quem foi das pessoas que deviam ser da sua inteira confiança que forneceu informações a um órgão de informação sobre o conteúdo de uma reunião de trabalho. Porque se quem está à frente de uma organização hierárquica tão poderosa e importante como é a PGR não pode confiar nos seus mais próximos colaboradores, somos uma república das bananas.
P.S.: Na verdade, somos. A saga da limitação dos mandatos autárquicos, por exemplo, com este último requinte à volta do "de" e "da" é a prova disso mesmo. Como o continua a ser, também, a saga do ministro Miguel Relvas, agora, novamente, debaixo de água.
Advogado. Escreve à sexta-feira ftmota@netcabo.pt

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