terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Quem quer, afinal, voltar a brincar à caridadezinha?

Por António Cluny, publicado em 8 Jan 2013 - 03:00 

Banco alimentarNa memória de muitos ainda se ouve o estribilho certeiro da canção de Barata Moura “Vamos brincar à caridadezinha”, que tão bem caracterizou uma época e um regime
1. No final de 2012, houve quem, a propósito das opiniões muito pessoais da Dr.ª Isabel Jonet, procurasse, despropositadamente, reacender um conflito religioso sem sentido no presente.
Pretenderam alguns, com efeito, contrapor uma alegada desvalorização que a Igreja faria dos direitos sociais constitucionais, ante uma opção desta, por um “assistencialismo” fundado apenas na “caridade cristã”.
Para consumo interno, tentou-se, nessa base, refazer alinhamentos políticos que hoje, verdadeiramente, não têm sentido entre nós.
Claro está que na memória de muitos se ouve ainda o estribilho certeiro da canção de Barata Moura “Vamos brincar à caridadezinha”, que tão bem caracterizou uma época, um regime e a colagem de uma entourage a uma certa Igreja que, nessa altura, prevaleceu em Portugal.
Acontece que, se já na época a doutrina social da Igreja não era exactamente a que, por motivos óbvios, era veiculada no nosso país, hoje, quando o acesso à informação é livre, não podem os portugueses deixar-se enganar tão facilmente com os mesmos falsos argumentos.
2. Muito recentemente, aliás, o Papa clarificou a posição da Igreja sobre esta mesma matéria.
Referindo-se ao Evangelho do Domingo do Advento, disse o Papa:
“A justiça destina-se a superar o desequilíbrio entre quem tem o supérfluo e a quem falta o necessário; a caridade incentiva a ser atento ao outro e a ir ao encontro dos necessitados, em vez de encontrar justificativas para defender os próprios interesses. Justiça e caridade não se opõem, mas são ambas necessárias e completam-se mutuamente.”
A 1 de Janeiro, no Dia Mundial da Paz, o Papa foi ainda mais explícito:
“Causam apreensão os focos de tensão e conflito provocados pelas crescentes desigualdades entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado.”
E acrescentou: “(…) as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia insinuam, numa percentagem cada vez maior da opinião pública, a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais.”
E concretizou melhor:
“E, entre os direitos e deveres sociais actualmente mais ameaçados, conta--se o direito ao trabalho. Isto devido ao facto, que se verifica cada vez mais, de o trabalho e o justo reconhecimento do estatuto jurídico dos trabalhadores não serem adequadamente valorizados, porque o crescimento económico dependeria sobretudo da liberdade total dos mercados.”
Para concluir: “O modelo que prevaleceu nas últimas décadas apostava na busca da maximização do lucro e do consumo, numa óptica individualista e egoísta que pretendia avaliar as pessoas apenas pela sua capacidade de dar resposta às exigências da competitividade.”
3. Aqueles que, entre nós, defendem agora um projecto de Estado, na melhor das hipóteses, “assistencialista” e contrário, na essência, ao que a nossa Constituição prevê – pois esta reconhece nos direitos sociais a base mínima da dignidade humana – poderão inspirar--se em muitas doutrinas, mas não será, porém, com os ensinamentos da Igreja actual que poderão justificar-se.
Cuidado, pois: contribuir para dividir hoje os portugueses a partir desta falsa querela doutrinária só favorecerá, porventura, aqueles que, sem nenhum tipo de caridade, querem atentar contra os seus direitos e a justiça social.
Jurista e presidente da MEDEL

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