quinta-feira, 10 de maio de 2012

Juízes avisam que reforma penal viola a Constituição



Magistrados com dúvida sobre crime de falsas declarações a autoridade pública e alargamento do processo sumário.
Os juizes avisam que a criação do novo crime de falsas declarações a autoridade pública – previsto na proposta de reforma penal do Governo – pode ser inconstitucional. E usam um argumento semelhante ao que o Tribunal Constitucional usou para considerar inconstitucional o crime de enriquecimento ilícito: isto é, que o tipo legal, tal como está na proposta, vai além do bem jurídico que se pretende proteger (autonomia do Estado), “em violação” dos princípios da subsidiariedade, proporcionalidade e adequação previstos no artigo 18e da Lei Fundamental. No parecer da Associação Sindical dos Juizes Portugueses (ASJP), a que o Diário Económico teve acesso, os magistrados lamentam que as alterações sejam “pontuais” e que o Governo não tivesse optado por uma “reforma profunda”. E deixam críticas, nomeadamente ao artigo 348a A, que pune com pena de prisão até um ano (ou multa) “quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”. Os juizes avisam que este crime, “tal como está delineado”, pode ser “de tal forma amplo” que acaba por abarcar “situações insignificantes ou que não justifiquem uma pena à luz do bem jurídico protegido”. É o caso de uma pessoa dar uma declaração falsa à polícia, ao fisco, à segurança social ou aos registos por erro ou sem dolo directo (intenção de enganar ou enriquecer). Embora o Ministério da Justiça tenha garantido ao Diário Económico que a proposta não visa abarcar falsas declarações às Finanças, os juizes argumentam que o artigo pode abarcar um conjunto vasto de situações. “Do modo como está construído o tipo [legal] verificar-se-á a criminalização de muitas contraordenações, independentemente da intencionalidade, do resultado ou do valor patrimonial”, diz o parecer dos juizes à proposta de reforma penal que o Ministério da Justiça apresentou recentemente (ver texto ao lado). A ASJP explica, por exemplo, que o artigo 118° do Regime Geral das Infracções Tributárias, que prevê coimas para quem falsificar, viciar ou alterar documentos fiscalmente relevantes, ficará abarcado no “novo tipo de crime, quando agora é contra-ordenação. Para que a Constituição seja “mais” respeitada, os juizes propõem que o Governo inclua no tipo legal o dolo específico (intenção subjectiva de enganar) ou a definição de um “valor mínimo para fazer espoletar a reacção penal” ou, ainda, uma regra de subsidiariedade para o caso de haver um conflito de normas. Até porque, lembra a ASJP, os outros crimes de falsas declarações exigem o “dolo específico” ou “um determinado resultado” para que o agente seja punido.
“Não se discorda do alargamento do crime de falsas declarações, desde que o bem jurídico seja de tal forma atingido que se justifique uma punição”, frisa a ASJP, para quem “o excesso de criminalização de condutas” é “uma fragilização da estrutura óssea do direito penal”.
“Julgamentos na hora” põem em causa principio da igualdade Não é apenas na criminalização das falsas declarações a autoridade pública que os juizes têm dúvidas constitucionais. O mesmo se passa na aplicação do processo sumário (a que os juizes chamam “julgamentos na hora”) aos crimes graves praticados em flagrante delito. A ASJP concorda com os processos sumários, mas argumenta que este tipo de processos imediatos (o Governo propõe em 48 horas) “sempre foi exclusivamente previsto para a pequena e média criminalidade”.
Por reivindicação do CDS/PP, o Ministério da Justiça propõe o alargamento dos processos sumários no caso de flagrante delito a todos os crimes, independentemente da pena aplicável, o que inclui crimes graves, como de cariz sexual, homicídios ou ataques à integridade física). Os magistrados opõem-se e argumentam que está em causa o princípio da igualdade face aos arguidos não apanhados em flagrante delito, porque estes continuam a ter acesso a tribunal colectivo ou de Júri ao passo que os arguidos sujeitos a um “julgamento na hora” não têm essa possibilidade. A ASJP defende ainda que nos crimes mais graves – mesmo em flagrante delito – estão em causa “bens jurídicos da grandeza da vida”, pelo que o julgamento deve ser “sereno, reflectido e bem fundamentando” e nunca em 48 horas.
Reforma penal está em fase de debate com os parceiros
Ministério da Justiça colocou para discussão pública a proposta de lei de reforma penal. Tentativa de retirar dos tribunais pequenos furtos, alargamento do processo sumário, suspensão da prescrição e menos recursos são algumas das medidas. Algumas propostas não são pacíficas.
1 DEFENSOR EM MAIS FASES DO PROCESSO
O Ministério quer tornar obrigatória a assistência de defensor em todos os interrogatórios feitos por autoridade judiciária. A ideia é possibilitar que estas declarações possam ser usadas mais tarde. Os juizes estranham esta medida porque vai aumentar “o encargo público”.
2 REGISTO CRIMINAL
O arguido deixa de estar obrigado a responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais e o interrogatório deve ser gravado em audio.
3 JULGAMENTOS IMEDIATOS
O processo sumário em caso de flagrante delito estende-se aos crimes com pena de prisão acima de cinco anos. Julgamento deve realizar-se em 48 horas.
4 MEDIDAS DE COACÇÃO
Os juizes passam a poder aplicar medida de coacção mais grave do que a que é proposta pelo Ministério Público em determinadas situações. Os procuradores não gostaram da medida, os juizes aplaudem mas admitem que esta opção” contende com aspectos essenciais da arquitectura do nosso sistema penal”.
5 RECURSOS
Passam a não admitir recurso os acórdãos “absolutórios” das relações, excepto se a pena aplicada na 1ª instância for superior a cinco anos. A ideia é evitar o uso abusivo dos recursos.
PRESCRIÇÃO
O mesmo objectivo de evitar o uso dos recursos como expediente dilatório levou o Executivo a propor a suspensão da prescrição do processo com a decisão da 1ª instância. Por cinco ou dez anos, consoante a complexidade do processo.
FURTO DE PEQUENO VALOR
É uma das alterações mais polémica, que já teve a contestação dos advogados e estabelecimentos comerciais. O Governo dá natureza particular ao furto de baixo valor (bem de necessidade), pelo que tem que ser o queixoso a dar seguimento à queixa e pagar as custas de abertura do processo. Os juizes aplaudem a medida mas dizem que devia ir mais além. Isto é, propõem mesmo a definição de um valor patrimonial a partir do qual será furto precisamente para tirar mesmo as bagatelas dos tribunais. I.D.B.
Diário Económico 8-5-2012

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