Por António Cluny, publicado em 20 Nov 2012
O povo admite com resignação que o poder já não reside na
lei, mas nos interesses que de facto governam, se necessário contra ela, e de
quem tem de a fazer respeitar
1. A “crise” actual não se resume a dificuldades económicas
e financeiras. A “crise” põe em risco já, também, a possibilidade de os estados
se regerem efectivamente pelas constituições e pelas leis que os seus povos
erigiram democraticamente como regra primeira de vivência conjunta dos
cidadãos.
Um acórdão notável do Tribunal Constitucional italiano veio
desvendar ainda mais a imensidão desta crise: a subsistência da própria lei
europeia.
Refere-se tal aresto à estabilidade dos vencimentos de
magistrados (imposta pelos tratados europeus) e à necessidade de o Estado
italiano repor os vencimentos anteriormente estabelecidos, reintegrando o
montante dos cortes entretanto realizados.
Na Europa há, contudo, países onde, apesar das decisões
irrecorríveis dos tribunais sobre tal matéria, os governos recusam a revisão de
tais medidas e a reintegração do que ilegalmente cortaram. Não, não me refiro a
Portugal.
2. Paulo Rangel, num artigo recente, procurou explicar, com
o cuidado necessário, as razões da obrigação da estabilidade dos vencimentos
dos magistrados. Invocou para tanto o exemplo da Constituição dos EUA, que
expressamente proíbe a sua redução.
A ONU, a UE e o Conselho da Europa pontificaram já também
sobre o assunto e com os mesmos fundamentos: a importância dessa estabilidade
como salvaguarda da independência dos magistrados e do poder judicial face aos
poderes institucionais e de facto que coexistem na sociedade.
3. Num país a braços com uma crise devastadora como a actual
pode parecer problemático sustentar publicamente tal posição, mesmo que ela
seja legalmente válida, racional e eficaz.
Recordem-se os escritos de exaltada “indignação moral”
vindos, curiosamente em regra, dos sectores que sempre se julgaram acima da
lei, nunca gostaram de tribunais nem de magistrados independentes.
Todavia, sabe-se já de situações de insolvência de
magistrados que, resultando apenas da concretização inesperada de tais
reduções, põem em risco a possibilidade da sua independência e,
consequentemente, da sua função.
4. Numa resolução recente, a MEDEL (associação europeia de
magistrados que reúne mais de 20 mil juízes e procuradores) salientou que os
governos que decretaram tais cortes parecem aceitar como boa a necessidade da
manutenção da estabilidade dos estatutos socioeconómicos das entidades
reguladoras independentes.
O fundamento é idêntico ao que as instituições europeias
usam para os magistrados: a preservação da sua independência face aos sectores
que regulam.
A duplicidade de critérios verificada não releva, contudo e apenas,
da aparente subserviência pessoal dos representantes dos poderes públicos face
aos interesses económicos. Releva, verdadeiramente, de uma mudança de paradigma
político, social e cultural, consubstanciada na aceitação acrítica e passiva da
supremacia do poder de interesses sem pátria sobre o poder democrático e o
Estado de direito: sobre o poder da lei.
É a admissão resignada de que o poder já não reside na lei
que o povo faz, mas nos interesses que de facto governam, se necessário contra
ela e quem tem de a fazer respeitar.
5. Os magistrados devem, obrigatoriamente, ser os primeiros
a participar, solidariamente, dos esforços e padecimentos dos cidadãos e a
sustentar a defesa dos seus direitos, mas, hipocrisias e populismos à parte, a
melhor maneira de o fazer, por paradoxal que seja, é fazer respeitar a lei e,
desde logo, a lei que resguarda a sua independência.
Jurista e
presidente da MEDEL
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