terça-feira, 9 de outubro de 2012

Crise, justiça e mudança

Por António Cluny, publicado em 9 Out 2012

As muitas associações de magistrados europeus têm elevado o nível da consciência e da reflexão sobre a “crise” para patamares de cidadania cada vez mais democráticos
1. Uma das inúmeras características desta “crise” é o quão gravemente ela afecta quase todos os sectores da sociedade.
Da capacidade para congregar as diferentes percepções que dela têm os que a sofrem pode resultar, todavia, uma consciência nacional nova dos problemas da sociedade e da maneira de os resolver com justiça.
A viabilidade das alternativas pode residir precisamente aí: no talento para formular sínteses que, não se atendo, neste momento, apenas a projectos políticos próprios, nem à memória de um passado recente – lá estava afinal a génese da crise –, possam extrair o que, como ideia e experiência, eles melhor oferecem, encontrando em simultâneo respostas novas e largamente aceitáveis, que, por mais justas, possam projectar futuro e justificar o empenho da maioria dos cidadãos.
2. Vejamos, por exemplo, o que se passa na justiça:
- Segundo o “Correio da Manhã” de 17 de Setembro, os juízes e procuradores gregos, face a cortes que atingiram já 50% dos salários, convocaram uma greve de 15 dias.
- O “Le Monde” de 21 de Setembro dá conta das insuficiências e do mal- -estar na justiça francesa: orçamentos insuficientes, leis de processo complexas e formalistas, um número insuficiente de procuradores, sobrecarga de trabalho e um sistema remuneratório que, em comparação com a média europeia, evidencia a pouca importância política e social que em França se atribui à justiça.
- O “El País” de 22 de Setembro noticiava que as variadas associações de juízes e procuradores de Espanha organizaram protestos e inclusive anunciaram a possibilidade de greve contra as reformas que o MJ pretendia introduzir, pois entendiam não responder à urgência de modernização dos tribunais. O governo, entretanto, recuou.
- As situações da Hungria, da Sérvia e da Roménia são também inquietantes. Assiste-se aí, respectivamente, à destruição dos mecanismos democráticos de controlo do poder judicial, a saneamentos em massa e legalmente não fundamentados de magistrados e à tentativa de instrumentalização do poder judicial para fins políticos.
Em certos casos, a intervenção conjugada das associações nacionais e internacionais (caso da MEDEL) conseguiu, veja-se o exemplo da Sérvia, reverter um processo consumado de saneamento selvagem de mais de mil juízes e procuradores, sugerido, à revelia das mais elementares normas de direito, por “peritos” económicos de organismos internacionais.
3. As muitas associações de magistrados europeus têm, entretanto, elevado o nível da consciência e da reflexão sobre a “crise” para patamares de cidadania cada vez mais democráticos e abrangentes.
A sua principal preocupação incide hoje no reconhecimento da diluição do papel da lei e dos tribunais ante a “imposição” de certos interesses mercatórios transnacionais, que nem as constituições nem as cartas de direitos internacionais reconhecem e privilegiam. A alternativa à crise, defendem, deverá assentar na democratização da justiça e na sua modernização, tendo em vista sobretudo a garantia e o reforço dos direitos constitucionais da cidadania.
4. Em Portugal, com o bom senso de quase todos, tem sido possível, como noutros momentos graves da história, evitar a implosão do sistema constitucional de justiça.
Bom seria que as anunciadas mudanças nas suas lideranças e as reformas de que ela, imperativamente, necessita, desta vez permitissem ultrapassar a sua deslegitimação crescente e a ainda maior vergonha de todos os que nela têm trabalhado nas desprestigiantes circunstâncias actuais.
Jurista e presidente da MEDEL

Sem comentários: