terça-feira, 11 de setembro de 2012

O papel da linguagem no “ajustamento” político em curso

Por António Cluny, publicado em 11 Set 2012

De repente, a questão do rigor e da verdade das linguagens política e jurídica parece ter ganho algum relevo social
família foto1. Pouco após ter enviado para publicação o meu último texto, fui surpreendido por um conjunto de artigos que abordavam o mesmo tema: a actual reorientação de conceitos políticos e jurídicos no discurso público.
O mais desenvolvido e esclarecedor dos que li é, sem dúvida, o de “El País” de 1 de Setembro: “La Ocupación del Lenguage”. Nele se procura desvendar como a usurpação da terminologia dos oponentes políticos desempenha, no cenário político espanhol, um papel fundamental na legitimação e na conquista da hegemonia cultural por parte das teses neoliberais.
No âmbito nacional, Betâmio de Almeida disserta, no “Público” de 2 de Setembro, sobre o uso e abuso do termo “regabofe”. Pretende o autor que, não se identificando o alvo da utilização de tal conceito, a acusação difusa e ambígua que ele pressupõe, sendo universalizada, pode tornar-se potencialmente cruel, pois atinge, no essencial, os cidadãos que não são os reais responsáveis pela crise actual. Dias depois, Vítor Malheiros, no “Público” de 4 de Setembro, disseca a relevante diferença entre o estrito conceito jurídico de corrupção e a mais ampla noção que dela tem a sociedade.
No dia seguinte, aqui no i, Rosa Ramos desenvolve o tema. De repente, a questão do rigor e da verdade das linguagens política e jurídica parece ter ganho algum relevo social.
2. George Orwell, antevendo embora os objectivos políticos da manipulação da linguagem num tipo de sociedade diferente, descreveu, no romance “1984”, os efeitos do condicionamento social alcançados pela introdução gradual do “duplopensar” e da “novilíngua”.
A concomitância de um tão grande número de artigos sobre o tema, que aparecem em jornais de diferentes países europeus, devia alertar-nos para uma condicionante real que arrisca conseguir confundir e redefinir os contornos do debate político e cívico europeu.
Uma característica comum ressalta: a necessidade sentida pelo discurso público dominante de, através de conceitos generosos de ideologias que se querem combater e de outros propositadamente difusos e pouco esclarecedores, não revelar, afinal, a verdade toda sobre os propósitos genuínos das medidas políticas que se querem promover.
No fundo, parece temer-se que os cidadãos – agora apresentados apenas, ora como “contribuintes”, ora como “consumidores”, ora como integrantes das “famílias”, e nunca como sujeitos próprios e titulares individuais de um estatuto político e jurídico no seio da comunidade nacional – não aceitem como boas as ideias de um liberalismo radical que desestrutura e restringe, até à anulação, o seu estatuto jurídico e constitucional.
É, de facto, um estranho liberalismo o que nega a individualidade e integralidade política de cada homem e apenas lhe reconhece “qualidades” sectoriais que nunca quer ver reunidas numa dimensão jurídica constitucional harmónica. Tal sectorização impede a sua necessária margem de liberdade e autonomia – a única que lhe possibilita a sua identificação com a “cidadania” de uma república regida pelo direito.
Desenquadrados da “cidadania”, essas outras “qualidades” sectoriais são, de facto, inócuas: podem ser escritas e reescritas tantas vezes e de tantas formas quantas se mostrarem necessárias para o poder e os interesses económicos prevalecentes.
Era essa “flexibilidade” – esse “duplopensar” – a qualidade política da “novilíngua” que o Big Brother se propunha explorar para condicionar a nova sociedade.
Jurista e presidente da MEDEL

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