sexta-feira, 8 de junho de 2012

Eurico Reis. “Estou a pagar pela minha língua, por ser persona non grata”


O juiz, queixoso num processo que desapareceu da Relação, diz que só alguém de dentro pode ser responsável. E CP e Refer “apanharam a boleia”
O caso obriga a recuar a 1994. Eurico Reis, juiz-desembargador na Relação de Lisboa, apresentou queixas contra a CP e a REFER depois de o pai ser colhido por um comboio na estação de Queluz-Belas. A queixa-crime foi arquivada, mas venceu duas vezes no cível, ao reivindicar que aquela passagem de nível de peões deveria ter pelo menos uma tabuleta a dizer “Pare, escute e olhe”. A CP e a Refer foram condenadas a pagar mais de 150 mil euros. Apresentaram recurso mas antes da decisão o processo desapareceu misteriosamente do tribunal onde Eurico Reis exerce funções. Dezoito anos depois, as empresas dizem não ter as gravações do julgamento e uma decisão de um juiz relator levanta o risco de tudo voltar à estaca zero e de o julgamento ter de ser repetido.
Como soube do desaparecimento do processo?
O meu advogado foi notificado em Janeiro. Parece que só deram conta do desaparecimento no final de Dezembro, quando estavam a fazer as estatísticas.
Sendo juiz aqui da casa não esperava que falassem directamente consigo?
Não quero tratamento especial. Apresentei duas exposições ao presidente da Relação. A primeira, de Janeiro, nunca teve resposta. À segunda respondeu essencialmente que vai defender a honra. Nunca pedi tratamento excepcional por ser juiz. O que peço é que me expliquem como o processo desapareceu. Só apresento queixa na PJ, no Ministério da Justiça e ao Conselho Superior da Magistratura um mês depois de apresentar o requerimento ao presidente da Relação.
As condições de segurança melhoraram?
O que acontece agora é que sempre que um processo sai ou entra os funcionários têm de assinar. Mas não os juízes. Antes nem isto havia, mas continuam a não ser medidas de segurança. Acho natural pedir esclarecimentos. E que se diga ao dirigente máximo de um serviço que ele terá de ser responsabilizado caso as cassetes voltem a desaparecer.
Está convencido de que não foi um acidente?
Completamente. Ainda mais quando ouço que o que há de extraordinário aqui é eu ser juiz e parte desse processo e não o de-saparecimento. O elemento diferenciador não é ser juiz. O meu pai foi morto porque uns senhores se estão nas tintas para a segurança das pessoas que pagam o bilhete para ser transportados. E agora o processo desapareceu e ninguém sabe dizer como.
Admite a hipótese de ter sido uma encomenda da CP ou da REFER?
Não tenho provas, só posso apontar factos. Na primeira conferência da reforma dos autos a postura das rés é pedir cópias dos documentos e das cassetes. Mas na segunda já não serviam. Perante isto não é ilógico concluir que a CP e a Refer apanharam a boleia.
Teve dedo interno?
Até hoje não sei qual foi o destino daqueles dois caixotes. O que sei é que isto nunca seria feito sem uma grande conivência interna. Não sei se as partes teriam o atrevimento de pensar que isso era possível.
O que levaria alguém da Relação a fazer isso?
As decisões bizarras à volta do processo só têm lógica a esta luz: este é o processo daquele tipo que é o juiz que anda a dizer que o sistema judiciário não consegue por si próprio reformar-se, tem de haver uma reforma externa. Ando a dizer isso há anos e estou a pagar pela minha língua. Não tenho qualquer problema, agora quando isso é levado ao extremo de prejudicar direitos de outras pessoas – a minha irmã, que tinha 18 anos à data da morte do meu pai, e a minha madrasta – eu não admito.
É persona non grata?
Há muito tempo, por ter denunciado muitas coisas no funcionamento da corporação. A última graduação para o Supremo, por exemplo, foi vergonhosa. O Supremo deixava de ser o principal tribunal para passar a ser um campo eleitoral.
Tem muitos inimigos?
Há gente que me odeia dentro da corporação. E dentro da Relação também há pessoas que não me falam.
O presidente da Relação é uma delas?
Ele acha que sou culpado por um colega meu ter impugnado as eleições. A anterior lei orgânica falava de dois mandatos de três anos, a lei actual prevê apenas um de cinco. E o presidente já tinha feito seis, uma espécie de Alberto João Jardim. Um colega da minha secção entendeu que não era legal, mas ele pensa pela cabeça dele.
E agora a CP e a Refer dizem que não têm cassetes.
Na primeira instância não ficou nenhuma cópia de segurança. O advogado que estava com o processo da CP morreu, não deixou as cassetes, e o da Refer mudou de escritório e perdeu-as. E agora os únicos que têm cassetes somos nós. As cassetes vão ficar aí no tribunal, mas sem segurança nenhuma novamente. Peço que fiquem num cofre e o dirigente do serviço diz-me que este caso não é extraordinário. Eles não se atreveram a dizer que manipulámos as cassetes, só que não têm termo de comparação e por isso o julgamento tem de ser repetido. Mas o meu colega da Relação vem dizer que as rés não precisam de fundamentar, basta dizer. Isso é inadmissível, é mais do que um erro técnico.
A CP e a REFER estão a mentir quando dizem que não têm as cassetes?
A única coisa que posso dizer é que é negligência grosseira.
Se baixar à primeira instância, acha que o destino já está traçado: haverá novamente julgamento?
Depois de tudo o que aconteceu, se o sistema judicial entender que os argumentos da CP e da REFER são válidos isto é a corroboração do que eu digo: este sistema não pode continuar. O sistema de justiça já deixou de ser um mero embaraço ao desenvolvimento do país para se tornar um empecilho. E é responsável por investimentos enormes não terem vindo para Portugal.
Se eu, que não sou juiz, amanhã tiver aqui um processo arrisco-me a que ele desapareça?
Se alguém não gostar de si e se envolver empresas muito poderosas, infelizmente não posso garantir que não vá acontecer.
Por Sílvia Caneco
Jornal I 2012-06-08

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