Lendo o acórdão do Supremo Tribunal espanhol que condenou o juiz Baltazar Garzón na pena de catorze meses de multa à razão de 6 euros por dia e em onze anos de proibição do exercício do cargo de juiz ou magistrado, não restam muitas dúvidas de que Garzón actuou de uma forma inadmissível num Estado democrático. Lamento-o sinceramente, não só pelo facto em si, mas também porque, entre muitas outras coisas, Garzón, há uns anos, com a sua investida contra Pinochet, fez o Direito Internacional e a justiça planetária progredirem de uma forma notável
Desta vez, sendo o juiz que dirigia o inquérito criminal conhecido como o “caso Gurtel”, em que estão implicados altos dirigentes do Partido Popular e em que se investigam crimes como o de corrupção e congéneres, Garzón decidiu ordenar a intercepção e gravação das conversas telefónicas entre os arguidos detidos e os seus advogados.
Segundo entendiam alguns agentes policiais, que o comunicaram verbalmente a Garzón, os presos continuavam as suas actividades criminosas, tais como o branqueamento de dinheiro e a ocultação de elevadas verbas obtidas ilicitamente e, nessas actividades, poderiam estar envolvidos os advogados.
Tanto bastou para que Garzón decretasse as intercepções e gravações das conversas telefónicas dos presos com todos os seus advogados. Ora um juiz com os conhecimentos, a experiência e, mesmo, a qualidade de Garzón não podia ignorar que tal medida tinha uma enorme gravidade, pondo em causa de uma forma fatal o direito de defesa dos presos, pelo que um despacho desse tipo só podia e devia ser exarado em condições especialíssimas, nomeadamente existindo indícios sérios da actividade criminosa dos advogados. Mas Garzón, quando lavrou o despacho em causa, fê-lo para todos os advogados de todos os presos, pelo que abrangeu até os advogados que vieram a ser constituídos posteriormente e sobre os quais, como é evidente, não podia haver quaisquer indícios, já que nunca tinham entrado no processo.
É de sublinhar que é o próprio Ministério Público que, no processo, chama a atenção para a gravidade do despacho de Garzón e para a necessidade de salvaguardar os direitos da defesa, apesar de lhe saber bem a decisão do juiz. Direitos de defesa que não foram salvaguardados, tendo sido transcritos no processo (e depois retirados) inúmeros excertos de conversas sobre a estratégia de defesa que nada tinham a ver com a continuação da actividade criminosa, mas que, por exemplo, configuravam a confissão de alguma factualidade delitual que lhes era imputada. Isto é, os presos foram pura e simplesmente privados dos seus direitos de defesa mínimos, em nome da descoberta da verdade.
Claro que se podem levantar muitas questões sobre a justiça desta condenação, sobre o seu carácter político ou revanchista e sobre dureza da mesma, mas há algo que resulta inequívoco: Garzón portou-se como um justiceiro, indo além do que podia e devia. E não é bom que os juízes assim procedam, já que negam a própria essência da justiça, ao falsearem um dos pratos da balança.
Podem as motivações ser as mais nobres e as mais sérias, mas se não se respeitam as regras essenciais do processo penal, está aberto o caminho para o arbítrio e para a negação da dignidade da pessoa humana. Não nos podemos esquecer de que a tortura foi sempre justificada com a necessidade da descoberta da verdade.
A ponderação dos diversos valores, direitos e interesses em jogo tendo em conta as leis vigentes é a essência da aplicação da Justiça e uma outra recente decisão espanhola, desta vez do Tribunal Constitucional, veio-nos lembrar exactamente isso.
Estava em causa o recurso a uma câmara oculta por parte de uma jornalista que se fez passar por uma doente e que foi recebida em consulta por uma esteticista e naturista. Na posse dessas imagens e do som captados com o desconhecimento da esteticista, a jornalista cedeu-as a uma cadeia de televisão que as divulgou num programa sobre a existência de falsos profissionais que actuavam no mundo da saúde, mas que se centrou sobre a actuação desta esteticista/naturista.
A visada não gostou e considerou que o programa lesava o seu direito à honra, à intimidade e à imagem, tendo recorrido aos tribunais. O tribunal de 1.ª instância absolveu a jornalista, por considerar que o seu trabalho se enquadrava dentro do jornalismo de investigação, e o tribunal de 2.ª instância confirmou a absolvição, por considerar que o trabalho jornalístico em causa tinha produzido informação verdadeira e com interesse geral.
O Supremo Tribunal, no entanto, veio a condenar a jornalista e a cadeia de televisão a indemnizarem a esteticista na quantia de 30.000 euros, por considerar que na ponderação entre, por um lado, o direito à intimidade e à imagem da esteticista e, por outro o direito à informação, deviam prevalecer aqueles no sentido de não se justificar o recurso à câmara oculta, que, no entender do Supremo Tribunal, não era imprescindível para a descoberta da verdade, podendo, por exemplo, a jornalista recorrer a entrevistas com clientes. E o Tribunal Constitucional, para onde recorreram jornalista e televisão, confirmou a decisão do Supremo Tribunal, não proibindo o uso da câmara oculta pelos jornalistas, mas claramente considerando-a um meio execepcional.
Tanto no caso de Garzón como no da esteticista, os tribunais espanhóis vieram lembrar-nos algo de essencial: que mesmo os melhores fins podem não justificar todos os meios.
Opinião de Francisco Teixeira da Mota
Opinião de Francisco Teixeira da Mota
Advogado
Público 2012-02-17
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