segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Vários milhões em reformas falhadas


Leis. Na última década apostou-se na privatização do notariado, na privatização da cobrança de dívidas, na entrega do apoio judiciário à Ordem dos Advogados. E tudo falhou.
O sistema de justiça foi alvo de grandes reformas na última década, com muitos milhões de euros envolvidos, mas todas se revelaram um grande fracasso. E mais milhões se continuam a gastar com remendos e reformas das reformas. A tão badalada crise da justiça já é considerada o reflexo da crise em que se encontram os profissionais forenses, desiludidos com os políticos que não acertam nas leis, e com os milhões que lhes prometem ganhar e não ganham. É neste contexto de desconforto que amanhã se realiza em Lisboa a cerimónia de abertura do ano judicial.
A primeira grande reforma do judiciário surgiu em 2003 com a privatização da ação executiva. O Estado entregava a uma classe profissional um trabalho, bem pago, concentrado, sobretudo, nos atos de penhora para a recuperação de dívidas. Mas a aposta revelou-se um tremendo fracasso e continua, passados quase dez anos, a ser alvo de sucessivos remendos. Os solicitadores investiram milhões em gabinetes, contavam ganhar milhões, e estão agora a desistir.
Avançou-se, em 2004, para a segunda grande revolução do judiciário: a privatização do notariado. Entendeu-se que o funcionalismo público dos cartórios era cinzento e pouco moderno. Centenas de notários investiram em instalações, contrataram funcionários, despediram-se da função pública Sonharam como eldorado. Hoje, dezenas estão a pedir o regresso à função pública, deixando para trás os cartórios falidos. Dizem-se enganados. A reforma foi um fracasso.
A terceira grande reforma fracassada, que envolve milhões, foi a entrega do controlo do apoio judiciário à Ordem dos Advogados (OA). De repente, os tribunais deixaram de controlar os atos praticados pelos defensores oficiosos e o Estado passou a gastar mais de 50 milhões de euros por ano com aquela prestação de serviços aos mais desfavorecidos. O Ministério da Justiça fez uma auditoria ao sistema e concluiu que muitos dos atos pagos nem sequer foram realizados. Por outro lado, muitos dos que trabalham honestamente esperam anos pelas remunerações. A reforma do apoio judiciário foi um fracasso. A ministra da Justiça já anunciou que vai apresentar à OA um novo sistema de acesso ao direito.
Direito que nasce torto
Mas há mais. Em 2007, concluiu-se a reforma das leis penais, com o gasto de milhões em estudos, pareceres e uma comissão que alterou os códigos. Neste momento, os juizes têm um estudo com propostas para a reforma daquela reforma e a ministra da Justiça prepara-se para nomear uma comissão que vai alterar novamente os códigos. Para a maioria dos operadores judiciários, a reforma penal de 2007 resultou de uma reação ao processo de pedofilia da Casa Pia. Daí os remendos terem sido constantes.
Há mais. Em 2008, a Assembleia da República aprovou uma outra revolução no sistema de justiça: a reforma do mapa judiciário. Fizeram-se estudos, e até se iniciaram as experiências-piloto em três novas comarcas: a de Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa Noroeste. Gastaram-se milhares de euros. Chegou-se, inclusive, a aprovar um decreto-lei para a avançar com mais duas novas comarcas: a de Lisboa e a da Cova da Beira. Essa reforma foi agora para a gaveta e alguns milhões de euros para o lixo. Neste momento está em debate público um novo projeto de organização judiciária. Por contabilizar estão os milhares de euros gastos com plataformas informáticas para a justiça. Com uma nuance curiosa: as plataformas não interagem umas com as outras. Os dois últimos Governos socialistas foram os que mais gastaram em meios informáticos, e não há ninguém satisfeito. O atual ministério promete agora um sistema integrado que ponha em rede todo o sistema.
Mas os maus exemplos de instabilidade legislativa existem em muitos outros diplomas, como, por exemplo, no Código das Custas Judiciais. Só nos últimos cinco anos as regras mudaram 16 vezes. Por isso, para os oficiais de justiça fazer a conta de um processo tornou-se tarefa quase hercúlea. Entretanto, a ministra já aprovou um diploma com custas iguais para todos os processos.
Há leis a mais
Para o provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, não há dúvidas. “Há leis a mais” e “alteram-se com muita frequência conforme os Governos se vão sucedendo”, diz. Para o bastonário da OA, as alterações já deixaram de ser ao sabor das mudanças de Executivo. “Agora, um mesmo governo faz múltiplas alterações consecutivas ao mesmo diploma, sem respeito pela estabilidade e pela segurança que as leis, mas sobretudo os códigos, deviam ter. Algumas alterações são verdadeiramente terríveis para os direitos fundamentais, para o património moral que caracteriza o sistema de justiça”, disse na OA durante uma homenagem a Nuno Godinho de Matos.
Os operadores judiciários ainda acreditaram que o pacto para a justiça entre o PS e PSD, resultante da paz judiciária alcançada no Congresso da Justiça de 2003, pudesse trazer alguma estabilidade à legislação.
Puro engano. Foi na base daquele pacto que se alterarem as leis penais, aprovadas em 2007, as quais não pararam de ser remendadas e vão agora ser outras vez reformadas. Foi também o caso do mapa judiciário aprovado em 2008, que agora vai quase todo para a gaveta. Foi o caso do Código das Custas Judiciais.
Rui Patrício, advogado, ex-vogal do Conselho Superior da Magistratura, no livro Mapa-Múndi da Justiça em Bilhete Postal, resume a instabilidade legislativa: “Junte-se dois ou três a uma esquina, não a tocar a concertina e a dançar o solido, mas em jeito de reflexão e de opinião, e logo o legislador português se excita, e excita-se tanto e com tanta frequência que a ejaculação legiferante sai-lhe bastas vezes precoce.” E referindose ao legislador “Tem prazer precoce efémero, não dá prazer nenhum, e duvido que fecunde alguma coisa.” Fora do livro, em declarações o DN, Rui Patrício atesta: “Várias vezes a qualidade da legislação é deficiente, e com alterações cirúrgicas, sem atenção ao sistema global, tomando o sistema incoerente.” Além de que, acrescenta, “altera-se a lei muitas vezes a propósito de casos concretos, a quente, sem reflexão e amadurecimento sobre a alteração e as suas consequências e as suas implicações no sistema global”.
MAGISTRADOS
Tratados ao nível de funcionários
REVOLTA. Os magistrados, judiciais e do Ministério Público, sempre foram vistos como representantes do 3.° poder e, por isso, os seus estatutos profissionais eram tratados ao nível de um órgão de soberania, com direito e deveres muito específicos. Mas o entendimento entre os vários órgãos de soberania terminou em 2005 quando o então primeiro ministro, José Sócrates, entendeu abrir uma guerra com a magistratura, com a desculpa de que gozavam tempo de férias a mais e que precisavam de aumentar a sua produção laborai. As férias judiciais diminuíram, de facto, mas a produtividade não aumentou, e, passado um ano, os advogados estavam a exigir a anulação da medida, explicando que ela não visava dar descanso, mas apenas permitir um espaço de acalmia para que todos os operadores judiciários pusessem o trabalho em dia. A medida foi anulada, mas o Governo PS entendeu não deixar os magistrados em paz e, depois, mexeu-lhes no estatuto remuneratório, na jubilação, nos apoios médico-sociais. O 3.° poder não foi tratado ao nível de um órgão de soberania como era. Os magistrados foram tratados como quaisquer funcionários públicos, e o mal-estar instalou-se.
ADVOGADOS
Apoio judiciário gera fraudes
ACESSO ao direito Até ao ano 2000, todo o apoio judiciário era decidido nos tribunais. Depois, passou a ser a Segurança Social a determinar quem tinha ou não direito e a Ordem dos Advogados (OA) a indicar o defensor oficioso. Mas os pagamentos pelos atos praticados nos processos continuaram nas secretarias dos tribunais. A partir de 2006, os pagamentos passaram a ser feitos pelo MJ, mas só depois de receber uma nota dos secretários judiciais a confirmar a realização dos atos do advogado. Em 2008, a lei é alterada e a Ordem não só passa a indicar o defensor como também passa a dizer ao MJ quanto tem de pagar, cabendo ao advogado efetuar o registo dos atos que diz ter praticado no processo, através de uma plataforma informática da OA sem o controlo das secretarias judiciais. O Estado passou, então, a gastar mais de 50 milhões de euros/ano, com cerca de 9500 advogados a quererem trabalhar no acesso ao direito. Mas como não há dinheiro, e alguns chegam a esperar anos pelos honorários, ninguém está satisfeito: os advogados porque a concorrência é grande, o Estado porque gasta muito dinheiro e até detetou fraudes nos pedidos de pagamento.
NOTÁRIOS
A falência dos cartórios privados
Enganados Até 2004, as pessoas deslocavam-se a um cartório e registavam os seus atos notariais perante funcionários públicos, os quais arrecadavam para o Estado cerca de cem milhões de euros por ano. Eram eles o suporte financeiro do sistema judiciário. O Governo de então (PSD/CDS) decidiu privatizar o notariado. Dezenas de profissionais investiram em cartórios, contrataram pessoas, criaram uma Ordem profissional. Nos cofres do Estado deixaram de entrar os cem milhões de euros. Mas o Governo seguinte (PS) trouxe-lhes dissabores. Os atos que tinham um custo proporcional ao valor do registo passaram a ter uma tabela fixa. Alguns atos que eram exclusivos dos notários passaram a ser também da competência de advogados, solicitadores e até de juntas de freguesia. O Estado criou serviços nas conservatórias (balcão único, empresa” na hora, etc.) que praticam os mesmos atos dos notários, abrindo uma guerra comercial entre o sector público e o privado. A reforma da privatização do notariado foi um desastre. Há cartórios privados a fechar todos os dias. Muitos dos notários que optaram pelo privado estão agora a pedir o regresso à função pública.
SOLICITADORES
Ação executiva foi um desastre
PENDÊNCIAS. Os solicitadores, até 2003, iam sobrevivendo com uma atividade bem definida. Mas, a partir daquele ano, o poder político ofereceu-lhes o exclusivo para a tramitação das ações executivas, um trabalho bem pago, concentrado, sobretudo, nos atos de penhora para a recuperação de dívidas cuja competência pertencia antes aos oficiais de justiça. De repente, centenas de solicitadores investiram em escritórios e em funcionários. As empresas que concentravam grandes dívidas – operadoras telefónicas, bancos começarama contratá-los diretamente, alguns em exclusividade. Muitos enriqueceram de forma honesta, outros não. Mas a reforma acabou por revelar-se um desastre. Em 2011, eram 700 os agentes de execução coadjuvados por cerca de seis mil funcionários. A pendência que em 2003 rondava os 300 mil processos passou para 1,2 milhões em 2011. Pendência essa que representa cerca de 19 mil milhões de euros de dívidas. Os processos emperraram os tribunais e as dívidas deixaram de ser cobradas. Perante o desastre, o poder político retirou aos solicitadores o exclusivo da ação executiva e alargou a competências aos advogados.
Licínio Lima
Diário de Notícias de 30-01-2012

Sem comentários: