sábado, 21 de janeiro de 2012

Três acusações que ameaçam a carreira de Baltasar Garzón


Começou esta semana a encenação do calvário judicial que poderá acabar com a carreira profissional do juiz espanhol Baltasar Garzón. O primeiro dos três casos por que é julgado é punível com desqualificação por 17 anos, significando na prática o afastamento definitivo da magistratura. Suspeita-se que as queixas são fruto de desejos ocultos de acerto de contas, vingança política, inveja profissional e preconceitos ideológicos. A acusação pública não vê crime na conduta do juiz.
Cobrem o processo mais de 200 jornalistas, incluindo correspondentes e enviados especiais de 30 dos maiores meios de comunicação mundiais. Organizações e partidos progressistas apoiam o juiz, ao passo que personalidades e porta-vozes conservadores não escondem a satisfação por o verem julgado.
Neste primeiro processo, o Supremo Tribunal acusa Garzón do crime de prevaricação (tomar uma decisão sabendo que é injusta), por ter ordenado a gravação de conversas telefónicas entre os principais acusados no caso Gúrtel — teia de corrupção que envolve o Partido Popular, no poder — e os seus advogados, ao suspeitar que colaboravam na ocultação de provas e no branqueamento de capitais. Protegido pela qualidade de juiz, Garzón não ocupa o banco dos réus. Senta-se, vestido com a toga, junto do seu advogado. Só foi obrigado a despi-la quando as partes compareceram para o interrogar.
No caso Gurtel são arguidos, entre outros, altos cargos do governo autónomo da Comunidade Valenciana (do PP, que fala em perseguição), incluindo o ex-presidente Francisco Camps. São acusados de receber presentes em troca de favores nos concursos públicos.
Os acusadores de Garzón argumentam que violou o direito de defesa dos arguidos ao gravar os advogados. Garzón negou-o, alegando que gravava presos e não causídicos, como ficou provado ao não resultar das gravações qualquer diligência judicial. As escutas foram autorizadas pelos promotores públicos e confirmadas pelo juiz do processo.
Dois dos sete magistrados que julgam Garzón — Varela e Marchena — são instrutores dos outros dois processos que ele enfrenta nos próximos dias: um por ter investigado os crimes da ditadura franquista (julgamento a 24 e 31 deste mês), impulsionados por duas organizações de extrema-direita, o partido da Falange Espanhola e a associação Manos Limpias, a quem o procurador acusou de “patente voracidade litigante”; outro devido a uma acusação de suborno por ter recebido dinheiro dos patrocinadores dos cursos que organizou na Universidade de Nova Iorque. Garzón tentou em vão recusar Varela e Marchena, aduzindo a sua manifesta parcialidade, mas nem o Supremo nem o Constitucional aceitaram. Conseguiu recusar outros cinco juizes deste caso. Varela e Marchena distinguiram-se na perseguição furiosa e comentários depreciativos sobre o juiz.
O juiz que ousou perseguir Pinochet
Garzón, tão admirado quanto odiado, popularizou a luta global contra o genocídio e os crimes contra a Humanidade. São tantos os que o admiram como os que o odeiam. Desperta tanto entusiasmo como suspeitas. Vaidoso, trabalhador infatigável, consciencioso, tenaz até à teimosia, Baltasar Garzón não é apenas o juiz mais famoso da história espanhola recente, mas também uma das personalidades do país vizinho com maior reconhecimento internacional.
A sua ideia da justiça universal, a luta convicta contra o genocídio e os crimes contra a Humanidade levaram-no a perseguir desde as ditaduras latino-americanas ao próprio Osama bin Laden. Atormentado pela convicção de que a sua carreira de juiz em Espanha terminou (está suspenso desde 2010) e de que o tribunal que o julga encontrará maneira de o condenar, Garzón orienta a sua atividade para o exterior: é conselheiro externo de Luis Moreno Ocampo, procurador do Tribunal Penal Internacional de Haia, consultor do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa e conselheiro da Organização dos Estados Americanos para o processo de paz na Colômbia.
Os caminhos do adolescente Garzón na sua Jaén natal não apontavam para o mundo das leis, mas para o eclesiástico: estudou em dois seminários, até que, para desgosto da sua modesta família, liderada pelo pai, funcionário de um posto de gasolina, decidiu entrar para a Universidade. Inclinou-se para o Direito depois de ter contemplado a Medicina. Em 1981, com 26 anos, já era juiz numa cidade importante da província de Huelva. Passados sete anos, dava o grande salto, tornando-se titular da 5ª vara da Audiência Nacional (AN), um tribunal especial dedicado a combater o terrorismo, o narcotráfico e a corrupção.
Ali recorreu sem descanso à sua potente artilharia legal, embora os inimigos o acusem de ser mau instrutor, de terminar processos sem solidez argumental e de cuidar melhor do impacto externo das suas decisões do que de cimentá-las tecnicamente. Foi na AN que se manteve ao longo de toda a sua vida profissional, exceto em duas interrupções controversas. Em 1993, pediu licença para dar o salto para a política, convencido pelo Partido Socialista Operário Espanhol. Novato, empolgado pela campanha, chegou a número dois na lista de deputados por Madrid, atrás do próprio Felipe González. O romance com os socialistas foi curto: renunciou em maio de 1994, diz-se que despeitado por não ter sido ministro (foi secretário de Estado da luta contra as drogas).
De regresso à AN, foi buscar aos arquivos o processo dos Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), um caso de terrorismo de Estado contra a ETA, perpetrado a partir de gabinetes recônditos, que conduziu à prisão o ministro do Interior, José Barrionuevo, e do seu vice, Rafael Vera. Garzón voltou a afastar-se da AN em 2005, chamado pela Universidade de Nova Iorque para conduzir um curso sobre terrorismo. O financiamento desses cursos pelo Banco Santander, entre outros, e a coincidência de Garzón ter retirado, mais tarde, uma queixa contra o presidente desta entidade, Emilio Botín, custaram-lhe a abertura do último dos três processos pelos quais está a ser julgado no Supremo Tribunal (ver acima).
As causas do juiz-estrela
Garzón tornou-se famoso pelas operações ‘Nécora’ (1990) e ‘Pitón’ (1991), contra o tráfico de drogas, sobretudo na Galiza. Dirigidas pelo próprio a partir de um helicóptero, desmantelaram as maiores redes espanholas de comércio de cocaína.
Destacou-se na luta contra a ETA, sem dúvida marcado pelo assassínio da sua amiga, a promotora Carmen Tagle, às mãos do grupo terrorista. Foi o primeiro juiz a deslocar-se a França para interrogar líderes da ETA presos no país vizinho; deteve comandos armados e perseguiu as estruturas de apoio ao bando: fechou o jornal “Egin” e a sua rádio; ilegalizou o Herri Batasuna (braço político) e prendeu os seus dirigentes; desarticulou a rede financeira da ETA.
Atreveu-se, também, a perseguir os grupos financeiros mais importantes, incluindo o Banco Bilbao Vizcaya, cujos executivos denunciou por ocultação de contas em paraísos fiscais e por se autoatribuírem pensões à custa dos acionistas. O que deu notoriedade internacional a Garzón foi a ordem de deter em Londres, em outubro de 1998, o ditador chileno Augusto Pinochet, dando esperança a milhares de vítimas das tiranias de todo o mundo. Instaurou processos contra as ditaduras argentina e uruguaia, expôs a ‘Operação Condor’ (que coordenava com a CIA a repressão uruguaia, chilena e argentina à “subversão” das esquerdas) e conseguiu extraditar para Espanha torcionários como Ricardo Domingo Cavallo, que aplicava técnicas abomináveis na sinistra Escola de Mecânica Naval, de Buenos Aires. Em 2002, personalidades e organizações promoveram a sua candidatura ao Prémio Nobel da Paz.
Angel Luís de la Calle (correspondente em Madrid - Expresso)
21-01-2012

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