Homicídio qualificado – agravante – culpa – ilicitude – dolo directo – direito à vida – especial censurabilidade – especial perversidade – meio insidioso – traição – meio particularmente perigoso – arma – in dubio pro reo – matéria de facto – interpretação – matéria de direito – medida concreta da pena – fins das penas
I - O crime de homicídio qualificado é construído a partir do tipo-matriz contido no art. 131.º do CP, pela adição de circunstâncias especializadoras, que relevam de uma culpa agravada, retratada nos exemplos-padrão, descritos no n.º 2 do art. 132.ºdo CP. A imputação ao agente de um crime de homicídio, com dolo directo representa a forma mais gravosa de imputação subjectiva, de querer o facto e saber que violava a lei, direito fundamental, ocupante do topo da pirâmide dos direitos de personalidade, inegociável e irrepetível, como é o direito à vida de alguém.
II - A meio caminho entre as circunstâncias modificativas agravativas e inominadas está uma figura reconhecida com amplitude pelo direito penal alemão, cujo desenho é obtido através daquilo a que doutrina chama uma técnica exemplificativa, denominada dos “Regelbeisplien”, exemplos-regra ou exemplos-padrão, tratando-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta em indicar através de uma cláusula indeterminada de valor, mas que também não descreve com a técnica detalhada que usa para os tipos, antes nomeia através da exemplificação padronizada.
III - A descrição constitui um exemplo indiciador de situações que devem conduzir à agravação, podendo o juiz negar esse efeito, se considerar que através da valoração do facto a agravação não existe, – cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 204 – ou seja, deverá ter-se por revogado o efeito de indício a partir da “existência na pessoa do autor ou na sua acção de circunstâncias extraordinárias que destaquem a sua ilicitude ou a sua culpa claramente do exemplo padrão”, escreve Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pág. 68.
IV - A técnica dos exemplos-padrão actua aquele efeito indício, interessando indagar se não concorrem outros como contraprova, eliminando a especial censurabilidade e perversidade do acontecido globalmente considerado, pois que além de não serem de funcionamento automático são meramente exemplificativas – Cf. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pág. 126 e Acs. do STJ, de 07-07-2005 e de 15-05-2008, Procs. n.ºs 1670 /05 e 3979/07.
V - A censurabilidade especial de que fala o art. 132.º, do CP, reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada, que sendo de tal modo graves reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto.
VI - A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor de que fala Binder, que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade – cf. Comentário Conimbricense do CP, pág. 29 e Teresa Serra, op. cit., pág. 63.
VII - A especial perversidade releva de um egoísmo abominável, assentando a decisão de matar em grande reprovação, deixando-se o agente motivar por factores desproporcionados, aumentando a intolerância colectiva ante o facto; a especial censurabilidade denota que o agente se não deixou vencer por factores que o deviam levar a abster-se de actuar, traduzindo um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos – Ac. deste STJ, de 18-09-2006, Proc. n.º 062679.
VIII - O vocábulo insídia, a propósito do uso de meio insidioso, tem o alcance de pérfido, dissimulado. Este conceito recebeu, para integração, nem sempre fácil e nem sequer de agora, o contributo da doutrina, chamando Nelson Hungria meio insidioso àquele meio dissimulado na sua influência maléfica, meio fraudulento ou sub-reptício por si mesmo, que inclui traição, ataque súbito, sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso, emboscada, enquanto espera da vítima em lugar por onde vai passar e dissimulação, que é ocultação da intenção hostil para acometer a vítima.
IX - Para Teresa Serra, o meio insidioso compreende não apenas os meios especialmente perigosos, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor – Homicídio Qualificado, pág. 13.
- Meio insidioso será, para Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do CP, tomo I, págs. 38 e 39, aquele cuja forma de actuação sobre a vítima ofereça características semelhantes ao veneno, do ponto de vista do seu carácter enganoso, sub-reptício, dissimulado ou oculto; o meio insidioso é equiparado ao veneno.
XI - Na insídia, o agente aproveitou uma distracção da vítima para actuar, age, enganando-a, cria uma situação que a coloca em posição de não resistir como em circunstâncias normais sucederia, escreve Maria Margarida da Silva Pereira, Direito Penal, II, Os Homicídios, pág. 42, para quem a traição sempre sugeriu agravação do homicídio, se bem que esta é a tónica dominante nessa tipologia, sobretudo sendo o agente pessoa “discernida”.
XII - A dissimulação é a ocultação da intenção hostil para com a vítima, surgindo à falsa fé, quando não se perfila qualquer propósito de ofender; a insídia repousa mais no meio usado; a dissimulação mais no modo como é usado, esclarece Magalhães Noronha, CP, 1988, pág. 32.
XIII - No recuado ano de 1923, Luís Osório, Notas ao CP Português, Vol. I, pág. 134, a propósito da definição de traição, considerava que nesta nem a vítima chega a lembrar-se da defesa, não dá pelo ataque senão no momento da sua realização; a surpresa exige uma tal rapidez no ataque que a vítima nem sequer tem tempo para se defender .
XIV - O Ac. do STJ, de 23-02-2000, Proc. n.º 1187/99 - 3.ª, definiu meio insidioso de uma forma paradigmática, amplamente compreensiva, abrangente, como sendo o que se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para com a vítima, constituindo para ela uma surpresa ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desprotecção em termos de a defesa se tornar difícil .
XV - E a jurisprudência deste STJ mantém-se fiel ao conceito, tratado teoricamente de modo uniforme, mas de nem sempre fácil apreensão no real, acentuando que a traição como meio insidioso deve ser definida como sendo o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de perceber o gesto criminoso.
XVI - A definição de meio particularmente perigoso – al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP, envolve em si uma ideia diferenciada de meios perigosos e muito perigosos de agressão, já que tem inscrita um “plus” de agressividade, que os meios comuns, normais, de agressão não comportam.
XVII - Os meios de agressão hão-de ser particularmente perigosos, portadores de uma letalidade acrescida, de um poder mortífero ante o qual a possibilidade de defesa é mais reduzida ou mesmo inexistente, por isso a exigência da particular perigosidade.
XVIII - Na doutrina, o conceito aparece recortado com clareza inultrapassável, quando o Prof. Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do CP, tomo I, pág. 37, escreve que a lei, na sua definição, não prescinde de duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado, e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes, resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
XIX - Uma arma de agressão – uma espingarda caçadeira indocumentada, sem licença de uso e porte, não adquirida num estabelecimento da especialidade, mediante autorização prévia para o efeito do Comando-Geral da PSP – usada à queima roupa, a cerca de 1 metro de distância da vítima, revela-se sem dúvida um meio perigoso de agressão. Porém, de frequente uso na prática do homicídio como é, não preenche a agravativa do crime, por não ser portadora de efeito mortífero mais gravoso do que as usadas naquela prática.
XX - O princípio in dubio pro reo é uma das garantias da maior importância na protecção da liberdade individual, ante a pretensão punitiva do Estado, partindo de uma visão optimista do homem, um acto de fé, com origem em Rousseau e, por outro lado, do valor supremo que a liberdade e a honra não podem ser-lhe retiradas enquanto persistir a justiça e o bem fundado do acto – Cf. Eduardo Correia, Les preuves em droit pénale portugais, RDES, Ano IV, págs. 17 e 22 a 40.
XXI - O seu âmbito de aplicação tem a ver e assume particular importância em termos de uma questão de facto, só se aplicando em face de uma questão de facto e não já de uma questão de direito, no ensinamento de Frederico Isasca, Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1987, valendo apenas em relação à questão da prova dos factos, como princípio probatório que é, relevando da dúvida sobre o facto, pois a dúvida sobre a interpretação do feixe normativo aplicável ao caso, respeitando ao plano substantivo, se resolve por aplicação dos critérios de interpretação legal.
XXII - O princípio pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais, não no sentido da dúvida interpretativa na aferição do sentido da norma, mas da dúvida sobre o facto tipicamente forense, escreve Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, BFD, Studia Jurídica, n.º 24, pág. 91.
XXIII - O princípio rege também para as causas de exclusão de ilicitude, culpa, pena e, portanto, para as condições objectivas de punibilidade, como se decidiu no Ac. do STJ de 15-12-83, BMJ 322, pág. 281, mas já não funciona quanto aos pressupostos processuais, se bem que em caso de persistente dúvida sobre factos materialmente relevantes para a admissibilidade do processo, particularmente quanto à prescrição do procedimento não deva preferir-se, em regra, o arquivamento à prossecução do processo – Figueiredo Dias, Direito Processo Penal, tomo I, págs. 218/219, com base no princípio da legalidade da repressão penal.
XXIV - Como, igualmente, se deve afastar o funcionamento do princípio, quando não se conseguir determinar, para além de toda a dúvida razoável, com precisão qual o tipo de crime efectivamente cometido, designadamente, furto ou abuso de confiança, hipótese em que, no entanto, dentro de uma comprovação alternativa dos factos, alguns autores admitem o funcionamento, como dá nota o Ac. do STJ, de 25-05-2006, CJSTJ, Ano XIV, TII, 2006, pág. 200.
XXV - O estado de dúvida em que se baseia o princípio não se confunde com uma qualquer incerteza probatória, apoiada numa qualquer convicção intimista, subjectiva, despida, de um mínimo de objectividade, pois que tal dúvida há-de ser razoável, ou seja sustentável na avaliação global dos factos, de forma lógica, coerente e razoável, ou seja minimamente credível para se impor aos destinatários da decisão.
XXVI - O STJ no aspecto em que o princípio é um princípio geral de direito probatório invocado no restrito âmbito dos factos, fornecendo-lhe a dúvida em que o julgador sucumbiu quanto a eles, não firmando a certeza bastante para condenar, por se estar no domínio da matéria de facto, não exerce qualquer sindicância ou poder de controle, mas já o faz, no controle que exerce sobre a legalidade dos meios de meios de prova usados – art. 125.º do CPP – , e, particularmente, sempre que dos termos da sentença ressalta que tribunal decidiu contra o arguido ou só não concluiu em seu favor porque, do texto daquela, resulta que incorreu no vício do erro notório da apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP e só por essa razão acolheu uma solução desfavorável.
XXVII - A medida concreta da pena é um puro derivado da concepção que o ordenamento jurídico adopta em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas.
XXVIII - A maior ou menor gravidade das penas está bem patente na amplitude da moldura, consentindo esta suficiente margem de individualização para responderem à teleologia que visam, enunciada no art. 40.º, n.º 1, do CP, de protecção dos bens jurídicos e de reinserção do agente.
XIX - Historicamente as penas nunca se dissociaram da finalidade de reeducação do agente para convivência futura em condições de não voltar a afrontar o tecido social, esta sendo a sua finalidade particular, concomitantemente com um fim público que aquele sobreleva quando em colisão, de prevenção geral positiva ou de integração, orientado para tutela das expectativas comunitárias na manutenção da validade e eficácia da lei, endereçado à contenção de potenciais impulsos criminosos.
XXX - O legislador penal atribui, pois, à pena uma função pragmática e utilitária, se bem que, na prática, ao aplicador da lei não seja indiferente a uma ideia de retribuição do mal causado, pela ponderação da culpabilidade do agente, que em caso algum aquela finalidade de prevenção pode ultrapassar, – n.º 2 do art. 40.º do CP – culpabilidade apreendida pela manifestação da resolução da vontade antijurídica, quando podia afirmar uma vontade de acordo com a norma jurídica.
XXXI - A medida da pena não pode assim exceder a medida da culpa, na esteira do postulado por Roxin, Direito Penal, 2004, págs. 65 e 66, fórmula que permite fixar a pena a montante da culpabilidade se as exigências de prevenção tornarem desnecessária ou desaconselharem mesmo a pena num limite máximo da culpa.
XXXII - Sobre a interacção entre as finalidades de prevenção, teoriza o Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229, que é sempre desejável uma medida óptima de protecção dos bens jurídicos para defesa da comunidade, mas abaixo desse limite é, ainda, viável descortinar outros patamares de protecção, pela consideração de razões de prevenção especial, que a influenciam decisivamente, até se atingir um limiar mínimo abaixo do qual se não pode descer sob pena de se colocar irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
XXXIII - Dos princípios gerais inspiradores da pena à sua fixação em concreto, tal qual o art. 71.º, n.º 1, do CP, no-lo indica, não vai uma diferença substancial, porque continua a enunciar-se que no seu “quantum” interfere a culpa e a prevenção, acrescendo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade penal, umas respeitantes à pessoa do agente e outras às condições que o envolvem e condicionam o cometimento do crime e que, sem o justificarem, o tornam compreensível. Só assim se alcançará uma pena justa, porque merecida e dela irradiará a advertência sobre o condenado como resposta da comunidade ao seu comportamento desviante e como factor de correcção social, de efeito pedagógico social sobre a própria colectividade, que dessa forma ver restabelecida a força da lei. (AcSTJ de 4-5-2011, Proc. n.º 702/09.1JAPRT.P1.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro)
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