Referiu a candidata na sua apresentação: «No nosso trabalho tivemos em vista saber, em primeiro lugar, se as alterações culminadas na Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto traduziram um distanciamento da noção de arguido e o seu significado do modelo da versão originária do Código de Processo Penal de 1987 e, em segundo lugar, se o arguido viu o seu estatuto processual amplificado nos seus direitos mas se se vê onerado por um juízo provisório de censura, socialmente significativo.
Ao longo da presente dissertação procuramos, também, responder a determinadas questões processuais fulcrais para a análise deste estatuto, nomeadamente, se o interrogatório constitui apenas meio de prova, meio de defesa ou se detém uma natureza híbrida; se o arguido, optando por prestar declarações quanto aos factos que lhe são imputados, está obrigado a dizer a verdade ou se lhe assiste um direito a mentir; se o suspeito, ao abrigo do n.º 2, do artigo 59.º do CPP, requerer que seja constituído como arguido se esse pedido deve ser sempre deferido; se o arguido pode recorrer de toda e qualquer decisão e quando é que nasce o direito ao recurso.
Dos três capítulos que compõem este estudo, o primeiro é dedicado a uma breve análise histórica do estatuto do arguido, centrada nos diversos sistemas processuais penais; o segundo à análise do mesmo estatuto no Código de Processo Penal de 1929 que consideramos fundamental para a compreensão deste código e da respectiva mudança face ao código actual.
Finalmente, no terceiro capítulo, abordou-se a evolução e sentido actual do estatuto deste sujeito processual no código vigente, sem descurar a evolução legislativa, doutrinal e jurisprudencial havida e alguns apontamentos ao direito comparado, designadamente ao direito espanhol e italiano, bem como à jurisprudência do TEDH.
O que permitiu concluir que o estatuto do arguido sofreu mutações ao longo dos tempos, tendo-se reflectido na vigência dos diversos sistemas processuais penais.
As alterações do estatuto do arguido, que surpreendemos, resultaram dos desenvolvimentos sociais e culturais da comunidade e das relações do Estado com o indivíduo, plasmadas nos diversos diplomas legais e sucessivas alterações, como exemplifica o código outrora vigente, o Código de Processo Penal de 1929.
Face às alterações deste diploma é de realçar que só com o Decreto-Lei n.º 185/72 de 31 de Maio, uma fase que reflectiu a «primavera marcelista» no ordenamento processual, é que se melhorou, fruto da revisão constitucional de 1972, na fase preparatória do processo, a situação processual do arguido no que respeita à defesa dos seus direitos fundamentais [, nomeadamente, a liberdade processual do arguido antes da culpa formada quer no que concerne aos interrogatórios deste, quer ainda no que toca à cominação de nulidade da acusação que não fosse precedida do interrogatório do arguido, nos casos em que o mesmo fosse obrigatório, quer, além do mais, dando a possibilidade ao arguido de arguir nulidades, sugerir diligências de prova, oferecer documentos e alegar o que entendesse a bem da defesa].
Por outro lado, criaram-se os juízos de instrução criminal, através da Lei n.º 2/72, de 10 de Maio e Decreto-Lei n.º 343/72, de 30 de Agosto, com o objectivo de se proceder à fiscalização judicial da actividade instrutória das polícias e do Ministério Público.
Com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e, posteriormente, com a Constituição de 1976 surgiram importantes e profundas alterações, no sentido do desenvolvimento de um processo penal conforme aos princípios do Estado de Direito democrático e social, desde logo com o Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro que instituiu o “inquérito policial” relativamente aos crimes puníveis com pena correccional “a menos que o arguido tenha sido preso e nessa situação haja sido ouvido em auto, caso em que haverá lugar a instrução preparatória, nos termos do Código de Processo Penal e legislação complementar” (art.º 1.º, deste Decreto-Lei). A competência para tal inquérito cabia, além do MP, a todas as autoridades policiais (art.º 3.º). O inquérito era, depois de concluído, enviado pela entidade policial ao Ministério Público, que podia completá-lo ou devolvê-lo à entidade policial para que esta o completasse (art. 4.º).
Face à emergência da Constituição e ao seu artigo 32.º que, entre as “garantias de do processo criminal”, figura que “toda a instrução será da competência de um juiz” e que temos uma estrutura acusatória do processo como uma significativa inovação, o Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro alterou, em conformidade, aquele Decreto-Lei n.º 605/75, substituindo a designação “inquérito policial”, para “inquérito preliminar”, e atribuindo competência para a sua promoção, em regra, ao MP.
Deste modo, é bem visível que desde o Código Processo Penal de 1929 até ao código de processo penal de 1987, ainda em vigor, apesar das várias alterações legislativas foi-se percorrendo um caminho com vista ao aprofundamento dos direitos dos cidadãos.
Enquanto que o Código de Processo Penal de 1929 consagrou um conceito de arguido, já o Código de Processo Penal de 1987 o não contempla directamente, mencionando apenas as situações em que uma pessoa deva ser constituída como tal: as dos artigos 57.º a 59.º
O Código de Processo Penal de 1987 apenas define suspeito na al. e), do n.º 1, do art. 1.º, autonomizando-o da figura de arguido. O suspeito pode, nos termos do n.º 2, do artigo 59.º do Código, por livre iniciativa, beneficiar do estatuto do arguido desde que requeira a sua constituição como tal, sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente o afectem. Se o suspeito requerer que seja constituído como arguido, entendemos que, por regra, deve deferir-se esse pedido, só havendo lugar ao indeferimento se não estiverem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
O paradigma de arguido mudou, pois, substancialmente desde a versão originária do CPP até aos dias de hoje, seguramente por pressão dos media e das representações sociais sobre o legislador, onerando o seu significado com um juízo de valor de suspeição desvalorizador.
Referimos a versão originária sem esquecer, no entanto, que entre o Código de Processo Penal de 1929 e o Código de Processo Penal de 1987, como já referimos, vigorou o Decreto-Lei n.º 605/75, alterado pelo Decreto-Lei n.º 377/77.
Este regime que vigorou provisoriamente entre nós reflecte, nos termos do artigo 5.º do mencionado Decreto-Lei, que após ter sido recolhido indícios da infracção e dos seus agentes, seria o mesmo remetido ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento ou para a instrução, conforme os casos. Deste modo, passou a haver como que uma citação directa, pois o arguido era convocado para o dia de julgamento, não havendo remessa do boletim do registo criminal e, consequentemente, não havendo por parte do sistema qualquer juízo provisório de censura.
Pelo que, como resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 605/75, “no processo correccional será a citação directa, independentemente de qualquer outra formalidade, que provocará a actuação judicial”, não estando então, pois associado ao requerimento para julgamento ou à dedução de acusação um juízo de suspeição fundado.
Contudo, na vigência da versão originária do CPP, o estatuto era concedido ao arguido e assumido para defesa daquele que era visado, mesmo que só meramente denunciado num inquérito, independentemente de terem sido recolhidos indícios contra ele, sem que lhe correspondesse o estatuto de suspeição desvalorizador (ao menos na intenção do legislador), mas antes a faculdade de uma maior amplitude da sua defesa perante a suspeita.
Se por um lado, a constituição como arguido serve para dotar o sujeito processual de inúmeras garantias de defesa, não é menos certo que, na prática, diminuía e diminui significativamente a imagem social da pessoa constituída como tal, visto que, por força das representações sociais e dos media, como iremos ver, passava a ser vista como alguém que podia ter cometido um crime. Daí que o vocábulo tenha adquirido uma conotação negativa, senão mesmo pejorativa.
Actualmente, só com indícios significativos (ou com a acusação ou requerimento de instrução) é que pode ser atribuído o estatuto de arguido, que assim passou a ter efectivamente um valor de suspeição desvalorizador.
Ora, já Cunha Rodrigues realça que “«legislar à flor da pele» é o dia-a-dia dos actores políticos, submetidos à invencível coacção das vagas de opinião”. Assim, face à carga negativa do vocábulo por influência das representações sociais e dos media, o legislador de 2007, alterou a al. a), do n.º 1, do artigo 58.º do CPP. Deste modo, a constituição como arguido, no Código de Processo Penal de 1987 afastando-se da versão originária, tornou-se muito mais exigente, pois deixou de haver uma constituição automática, considerando apenas como arguido aquele sobre quem recaia suspeita fundada da prática do crime e não todo aquele que tiver prestado declarações na qualidade de denunciado. Conjugando-se este preceito com o n.º 1, do artigo 272.º do CPP, resulta que, se não houver fundada suspeita da prática do crime, determinada pessoa já não pode ser constituída arguida, bem como não pode ser alvo de interrogatório pelo Juiz, Ministério Público ou Órgão de Polícia Criminal.
Acresce que, a constituição como arguido, com a revisão ao código, em 2007, feita por OPC é comunicada à autoridade judiciária com vista à sua convalidação, de forma a evitar-se a facilidade com que esse estatuto era anteriormente obtido.
A partir do momento em que uma pessoa é constituída arguido passa a beneficiar de todas as garantias de defesa consagrados na Constituição, na lei ordinária, bem como nos diversos diplomas internacionais. O Código de Processo Penal de 1987 começou por ser, de algum modo, limitativo, consagrando actualmente, além dos direitos dispersos pelo código, os direitos previstos no n.º 1, do artigo 61.º.
Como as alterações da lei ordinária o demonstram, é bem visível o reforço dos direitos processuais do arguido, que detém um estatuto processual muito mais amplo e protector, nomeadamente com a possibilidade de a audiência de discussão e julgamento ocorrer na ausência do arguido, consagrando-se como uma das excepções do direito de presença do arguido, em virtude da alteração constitucional, em 1997, e, consequentemente, com a alteração da lei ordinária, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto e pelo DL n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro.
Assistimos, também, ao reforço trazido pela Lei n.º 48/2007, do direito de o arguido, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 61.º do código, ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade, permitindo-lhe uma maior preparação da sua defesa, o que ocorre igualmente com o seu interrogatório, maxime nas als. c) e d) do n.º 4, do art. 141.º do código.
Quanto à natureza do interrogatório do arguido e tomando posição sobre essa questão controvertida, pensamos que é um meio de prova porque o arguido ao prestar declarações contribui ou pode contribuir para a descoberta da verdade, podendo o seu conteúdo influir na respectiva decisão. Mas é igualmente um meio de defesa, pois é a oportunidade para o arguido poder a todo o momento apresentar a sua versão dos factos, fornecendo dados para a investigação ou para a formação do convencimento do julgador na audiência.
Além de que, o arguido apenas está obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe forem colocadas quanto à sua identificação e antecedentes criminais, sob pena de responsabilidade. Quanto ao mais pode remeter-se ao silêncio e até faltar à verdade sem qualquer punição e sem que lhe assista um direito a mentir.
Vimos que o direito ao recurso integra o estatuto do arguido, o que não significa, no entanto, que pode recorrer de toda e qualquer decisão, pois o TC tem considerado que o arguido “não pode recorrer de todo e qualquer acto do juiz” e que este direito constitucional se basta com a existência de um duplo grau de jurisdição relativamente a decisões penais condenatórias e a decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Tanto assim é que, o actual código no seu artigo 400.º enumera, além de outras disposições espalhadas pelo código, as situações em que é inadmissível o recurso.
No que se refere ao momento em que nasce o direito ao recurso, consideramos que o mesmo se situa na prolação da decisão da primeira instância porque só perante a existência de uma decisão desfavorável é que o arguido verifica se tal decisão é susceptível de recurso de acordo com as regras e os critérios de admissibilidade do recurso.
Revertendo ao núcleo essencial deste trabalho, importa reter que o arguido, se bem que detentor de direitos de defesa reforçados, vê-se onerado por um juízo provisório de censura socialmente significativo, por influência dos media na sociedade hodierna e das representações sociais. No nosso trabalho dispensamos de efectuar uma análise pormenorizada, em virtude de termos dado como assente que está na memória colectiva e na vivência que os media e as representações sociais têm uma enorme influência para a conotação negativa e até pejorativa que o conceito arguido acarreta, ou seja, a diminuição da imagem social de determinada pessoa quando constituída arguido generalizou, sob medição dos media, ao homem da rua, fazendo subir, também ao nível da representação e da consciência colectiva, a sua conotação negativa.
Referimos a influência dos meios de comunicação social por terem redimensionado o fenómeno de forma dramática, pois nos tempos em que correm, basta ligar a televisão, abrir um jornal, ligar a rádio, ou mesmo fazendo pesquisas na internet, para “assistirmos” à tentação de alguns media, autoproclamando-se representantes da opinião pública, de se instruírem como polícias, acusadores e juízes, definindo culpas e condenando sem apelo nem agravo.
Referimos, por sua vez, representações sociais, pois são o conjunto de explicações, crenças e ideias que nos permitem evocar um dado acontecimento, pessoa ou objecto. Estas representações são resultantes da interacção social, pelo que são comuns a um determinado grupo de indivíduos.
Denise Jodelet defeniu as representações sociais como “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Deste modo, no presente estudo, as representações sociais são as convicções que a sociedade tem num determinado momento acerca do conceito arguido, em virtude de determinadas circunstâncias externas, nomeadamente, dos media, opinião pública e rumores.
Segundo Serge Moscovici, o indivíduo sofre pressão das representações dominantes na sociedade e é nesse meio que pensa ou exprime seus sentimentos. Deste modo, é visível que a conotação acerca do conceito arguido é deveras negativa e até pejorativa, causando situações de angústia, tristeza e humilhação na pessoa constituída enquanto tal. Hoje para a generalidade da sociedade, para o homem comum (leigo), ser constituído arguido acarreta uma diminuição da sua imagem social, pois é visto como criminoso, irresponsável e culpado. Além disso, consideram que a “constituição de arguido” cria, a maior parte das vezes, a convicção da prática do crime pela pessoa visada, já que a comunicação social publicita a constituição de arguido, mas nunca dá notícia dos arquivamentos do processo. Daí que, a mediatização da justiça, veio trazer à constituição de alguém como arguido uma carga estigmatizante e degradante da condição humana. Assim, os media constituem um meio de manipulação da sociedade, pois esta dá como garantido as mensagens que os media transmitem, proporcionando, na maior parte das vezes, a uma mudança de opinião que determinada pessoa tem dada a persuasão dos mesmos.
Segundo Cunha Rodrigues, “as representações sociais mudam com os tempos” e para a reversão de tais representações sociais exige-se, neste momento, a assunção pelos media de uma função essencialmente pedagógica e esperar o seu reflexo na opinião pública mude e passe a encarar este sujeito processual, como alguém que detém inúmeras garantias de defesa, inclusive a sua presunção de inocência até trânsito em julgado da sentença condenatória.
Face ao exposto, concluímos que com as diversas alterações ao código, à doutrina e à jurisprudência, assistiu-se a um distanciamento da noção de arguido e o seu significado processual da versão originária do CPP/87, tornando-se, para o efeito, a sua constituição como arguido muito mais exigente e o seu significado onerado por um valor de suspeição desvalorizador. O arguido vê hoje o seu estatuto amplificado nos seus direitos, como também se vê onerado por um juízo provisório de censura socialmente significativo.»
Sem comentários:
Enviar um comentário