terça-feira, 29 de março de 2011

Tertúlia sobre Eutanásia

Para uma Tertúlia sobre Eutanásia, levada a cabo pelo Núcleo dos Estudantes de Psicologia do Instituto Superior da Maia (ISMAI) realizado a 9 de Março de 2011, enviei a pequena introdução que se segue:

«Começaria por lembrar que, como dizia Schopenhauer, se a Filosofia nasce do assombro, a morte é o seu grande génio inspirador.

Mas a problemática da morte que agora nos ocupa motivou também uma página de Miguel Torga, que se pode relevar inspiradora.

Escrevia ele em 1967:

"A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias.

Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte".

E na verdade, trata-se do direito de cada cidadão a morrer a sua própria morte.

A morte biológica não foi ainda vencida (nem nunca será, pois que se insere no mais profundo da nossa concepção celular), mas a técnica adiou esse destino irremediável do nosso horizonte imediato para um momento mais longínquo, o que se traduz no aumento da esperança média de vida.

Paralelamente à pretensão de adiar a morte, o desejo de morrer em paz constitui uma exigência humana cada vez mais generalizada e aceite.

Colocando-se, então, a questão de saber se não será cruel e bárbaro exigir que uma pessoa seja mantida contra a sua vontade, recusando-lhe a libertação doce e suave quando a sua vida perdeu toda a sua dignidade de beleza, significado e perspectivas futuras?

E , se não seria a Eutanásia, então, capaz de proporcionar essa morte tranquila e serena, um gesto de piedade e carinho que eliminaria o desespero e a ansiedade do doente e o sentimento de inutilidade e fardo para os outros, que evitaria também as dores e sofrimentos terminais, sem nenhuma esperança de salvação?

É esta, em síntese, a demanda aqui debatida.

Um único substantivo: eutanásia, engloba acções muito diferenciadas, do ponto de vista médico, moral e jurídico, gerando significativa confusão.

Eutanásia, em sentido restrito, deve ser entendida como provocação directa e deliberada da morte do doente por piedade e compaixão, para evitar sofrimentos absurdos (voluntária – a pedido do doente ou involuntária − decidida pelos médicos e/ou familiares, sem poder contar com a vontade do doente). Distanásia consiste em atrasar o mais possível o momento da morte usando todos os meios, proporcionados ou não, ainda que não haja esperança alguma de cura, e ainda que isso signifique infligir ao moribundo sofrimentos adicionais e que, não conseguirão afastar a inevitável morte, mas apenas atrasá-la umas horas ou uns dias em condições deploráveis para o enfermo. Adistanásia significa o abandono das técnicas necessárias para manter as constantes biológicas de um doente que perdeu definitivamente a sua condição humana, como é o caso de um indivíduo com um corte irreversível de toda a sua função cerebral. Chama-se Ortotanásia, o deixar morrer em paz, morte natural, sem interferência da ciência, permitindo ao paciente morte digna, sem sofrimento, deixando seguir a evolução e percurso da doença evitando métodos extraordinários de suporte de vida em pacientes irrecuperáveis e que já foram submetidos a suporte avançado de vida. A persistência terapêutica em paciente irrecuperável pode estar associada a distanásia.

Sabemos que o homem tem medo da morte, prefere ignora-la, negar a sua existência. Daí que, quando se depara com a sua proximidade, procura transferir a responsabilidade para outrem – o médico. E as outras pessoas, perante o moribundo, usam frequentemente uma atitude ligeira, fruto da sua incapacidade de encarar a morte.

Mas, perante o moribundo deveríamos permitir que este pudesse manifestar a sua dor, insegurança, rebeldia, falta de fé, todas as suas preocupações, o que só se consegue através da nossa aproximação e confiança, constituindo, ao invés, a condenação do moribundo ao silêncio, a sua pior condenação.[1]

Mas tal atitude requer muita compreensão e paciência pois que se tratam de momentos muito densos e comprometidos, necessariamente vividos com grande autenticidade.

Com efeito, ajudar um doente é dar-lhe uma comunicação afectiva em que possa compartir o que vive e o que sente.

Mas, a falta de preparação humana para essa tarefa, a despersonalização dos grandes centros, a redução do tempo de disponibilidade, o temor em relação a este assunto de grande responsabilidade e compromisso conduzem, por via de regra, à saída mais fácil: ou seja à utilização de medicamentos que o colocam na inconsciência e eliminam a necessidade de qualquer comunicação.

No entanto, está disponível outra solução mais digna: unidades de cuidados paliativos, que são já objecto de atenção entre nós e nas quais se dá importância à preocupação especial que o ambiente humano que cerca o doente constitui para se responder às suas exigências afectivas e para o ajudar a superar os seus medos, aliviar as dores físicas e tensões interiores, permitindo-se, por outro lado, que se conserve a sua autonomia e lucidez – respeitando-se a personalidade do paciente.

Salienta-se também que a ética, face à despreocupação humana e psicológica perante o doente, tem de recordar a obrigação de ajuda quando se pretende uma morte digna e tranquila: um direito fundamental do moribundo do qual todos nos temos de sentir responsáveis.

Feitas estas reflexões básicas que nos permitem situarmo-nos, é momento de esboçar um apontamento sobre a relação da eutanásia com o direito, designadamente o direito penal.

Assente que a eutanásia não está directamente prevista, a primeira norma convocada é a do art. Art. 133.º do C. Penal respeitante ao homicídio (privilegiado) por compaixão: «Quem mata outra pessoa dominado por compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos», quando a pena de homicídio simples é de 8 a 16 anos de prisão.

Consagrou-se a eutanásia activa involuntária[2], por acção.

Mas exclui-se a eutanásia eugénica e a eutanásia económica que se enquadram no homicídio simples ou qualificado.

O homicídio privilegiado é o homicídio que recebe censura mais suave, em razão dos motivos que determinaram a sua perpetração.

No contexto, há homicídio por compaixão sempre que o agente provoca a morte de alguém por piedade, movido pelo exclusivo propósito de poupar a vítima ao sofrimento físico com que se debate.

Os autores costumam incluir a eutanásia (por acção) no homicídio por compaixão, definindo-a como o homicídio misericordioso, que é praticado para aliviar piedosamente o irremediável sofrimento da vítima.

Já quanto à eutanásia homicida por omissão, ela não é enquadrável no Código Penal. Não deve ser considerada punível, pois a lei incrimina o encurtamento da vida e não a atitude negativa que constitui a omissão do seu prolongamento por meios artificiais quando, até onde a ciência dos homens pode alcançar, o fim está à vista…

Com efeito, deve distinguir-se a Eutanásia do simples abandono dos meios desproporcionados. E não se pode, fazer equivaler a acção à omissão, a partir da consideração de que ambas podem produzir o mesmo efeito.

Exemplo clássico do homicídio privilegiado por compaixão é o do médico que, movido por piedade, abrevia a vida do seu doente que se debate em grande sofrimento e sem qualquer esperança, ministrandolhe uma substância letal (eutanásia activa por acção).

Esta norma fala também no homicídio por motivo de relevante valor social ou moral, pretendendo o legislador referir-se naturalmente a motivo que diminua sensivelmente a culpa do agente, dominando-o.

Estão naturalmente excluídos as «razões» ideológicas, políticas ou pretensamente científicas, de que foram exemplo as práticas eutanásicas nazis.

Sublinhe-se que a previsão do art. 133.º do C. Penal se refere apenas às situações em que o agente da infracção actua autonomamente, isto é, movido por uma vontade própria que é exclusiva. Se concorrer com a sua vontade a vontade da vítima temos, então, crime diferente, o homicídio a pedido de que fala o art. 134.° (eutanásia a pedido).

Neste âmbito, vale a pena abordar uma situação delicada: o médico, para aliviar o sofrimento do doente, tem que usar e usa de meios que lhe encurtam a vida.

Estamos perante um conflito de deveres:

de um lado, o dever de proteger a vida do paciente; e

de outro o dever de lhe aliviar o sofrimento.

Qual sacrificar?

Não será de exigir que, em situações como esta, o médico mantenha o seu doente em sofrimento, que poderá ser insuportável, à custa da conservação da sua vida.

O caso concreto dirá o melhor juízo, mas objectivamente, e com fundamento em estado de necessidade desculpante que é causa de exclusão da culpa[3] poderemos desresponsabilizar criminalmente o agente que na emergência se tenha socorrido das melhores artes da sua profissão.

Dispõe o art. 134.º do C. Penal sobre o homicídio a pedido da vítima, que «Quem matar outra pessoa determinada por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com a pena de prisão até 3 anos.»

Estamos aqui perante a eutanásia forçada e determinada por pedido da vítima, ou seja, perante a eutanásia activa voluntária.

Convém reter, neste domínio, com o Papa João Paulo II que, «quando a morte é inevitável, independentemente dos meios que se utilizem, é permitido em consciência tomar a decisão de recusar formas de tratamento que poderiam apenas assegurar um prolongamento precário e penoso da vida, de modo a que o tratamento normal concedido a pessoas em condições semelhantes continue a ser prestado».

E que o dever de assistência e tratamento do médico persiste até ao momento em que sobrevém a morte – prevalecendo abertamente, na determinação deste momento, o critério da função cerebral e da chamada morte biológica.

O que coloca a questão das hipóteses do chamado auxílio médico à morte – para os casos, portanto, em que o doente se encontra já incurso num processo que, segundo o conhecimento humano e um razoável juízo de prognose médica, conduzirá sem remissão à morte.

O pedido de que fala o art. 134.º no homicídio a pedido tem de ser:

sério, proveniente de pessoa capaz e denunciador de um propósito esclarecido e decidido, (idóneo, portanto, para convencer o destinatário);

instante, firme, insistente, pertinaz, repetido, convincente; e

expresso, manifestado de forma inequívoca.

Também é convocada por esta temática o art. 135.º do C. Penal: ajuda ao suicídio: «quem incitar outra pessoa a suicidar-lhe, ou lhe prestar ajuda para esse fim é punido com pena de prisão até 3 anos, se o suicídio vier efectivamente a ser tentado ou a consumar-se», tratando-se de menor de 16 anos ou com capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída a pena é de prisão de 1 a 5 anos.

Pode colocar-se aqui a questão de saber se a participação no suicídio pode ser prestada por omissão. Quanto à instigação parece-nos não ser possível instigar-se por meio de um non facere, uma vez que a instigação pressupõe uma conduta activa que faça nascer na vítima a vontade de pôr termo á vida ou reforce uma ideia da morte já antes pensada. Quanto à ajuda no suicídio cuido que ela pode resultar, em certas circunstâncias, de uma conduta omissiva, como quando o participante tem o dever jurídico de impedir a morte, e, podendo evitá-la, o não tenha feito.

Finalmente, importa considerar o art. 139.º do C. Penal, propaganda do suicídio, que ocorre quando, por qualquer modo, for feita propaganda ou publicidade de produto, objecto ou método preconizado como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar suicídio.

Este tipo de crime visa sancionar aquele que, de forma pública, atribuir a produto, ou método idoneidade para provocar a morte a quem queira fazê-lo ou propriedade para a provocar sem sofrimento, constituindo assim um aliciante para quem tenha predisposição para pôr termo à vida e não se encontre ainda suficientemente decidido, em virtude de, por exemplo, temer enfrentar os custos de um expediente de que se não conhece os efeitos ou as dores ou angústias que provoca. Cita-se até o exemplo de livros já dados à estampa que divulgam mecanismos eficazes de suicídio, constituindo como que compêndios de morte segura e sem dor.

Pomos muitas reservas a esta nova incriminação, além do mais porque ela se torna capaz de absorver condutas que estão aquém dos próprios actos preparatórios, o que pode prestar-se a abusos.

Referidas brevemente as normas do Direito Penal, relacionadas com a eutanásia é momento de deixar de abusar da vossa paciência e terminar, não sem antes recordar que, de tal modo a morte faz parte da nossa existência, que ao ser humano se substantivou o adjectivo mortal.

ISMAI, 9 de Março de 2011

Manuel Simas Santos



[1] A rebeldia contra o inevitável (a morte) nasce depois do moribundo tomar consciência da sua gravidade. No fundo é um protesto vital ao descobrir que já não existe nenhuma saída para o seu problema. Esta rebeldia expressa-se de formas diferentes, projectando-se sobre médicos, hospitais, familiares e até sobre a sociedade. Trata-se de encontrar um culpado daquilo que já não tem solução, atitude que é igualmente assumida com frequência pelos familiares que não aceitam a morte de um ser querido, que talvez se pudesse ter evitado se tivesse tido outras possibilidade que lhe negaram,

A aceitação da morte não é alcançada pela maioria dos pacientes, sendo que tal aceitação se traduz numa reconciliação pacifica com o destino, na disposição a assumir a proximidade desse futuro.

[2] No sentido usado acima, sem a vontade da pessoa morta.

[3] Art. 35.° do Código Penal.


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