Concurso de infracções - crime continuado - pressupostos - culpa - bens eminentemente pessoais - abuso sexual de crianças agravado - crime de trato sucessivo - prevenção especial - prevenção geral - medida concreta da pena
I - Como regra, o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal) – art. 30.º, n.º 1, do CP –, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica for posta em crise, em que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente.
II - Nos termos do disposto no art. 30.º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa.
III - A recente reforma do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, introduziu no art. 30.º o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa.
IV - Esta alteração, correspondente ao n.º 2 do art. 33.º no Projecto de Revisão do CP de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
V - Essa discussão não mereceu conversão na lei por se entender que o legislador reputou tal desnecessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado, ao preceito citado.
VI - Diferente não é o pensamento de Jescheck, para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado, por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos em relação a cada acto individual, sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cf. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, ed. Bosh, pág. 652 e ss, e Acs. deste STJ de 10-09-2007, CJSTJ, Ano XV, tomo 3, pág. 193, e de 19-04-2006, CJSTJ, Ano XIV, tomo 2, pág. 169.
VII - A alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
VIII - Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
IX - Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
X - São circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos (veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido); o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.
XI - Resultando do acervo factual provado que o arguido se aproveitou, em todos os casos, da ausência de sua mulher e mãe das menores, filhas de ambos, da residência comum, para daquelas abusar sexualmente, servindo-se do ascendente sobre elas, como pai, são circunstâncias não exteriores ao arguido, mas próprias, por que providenciou, das quais tirou partido para satisfazer paixões lascivas, o seu instinto libidinoso, de que foram alvo crianças indefesas, incapazes de avaliar a amplitude e a gravidade do facto – nunca haviam até então mantido contactos sexuais com outrem – e de deduzirem oposição, de resto irrelevante, não se denotando qualquer predisposição para o facto criando uma menor exigibilidade de procedimento, apesar de ser visível a prática de modo mais que homogéneo, sempre idêntico, aliás, de execução. Não foi qualquer condicionalismo criado pelas filhas, que o temiam, que determinou o arguido à prática dos crimes, mas um desígnio interno, endógeno, firme, ao longo dos anos, num período temporal sucessivamente renovado, sempre próximo, evidenciando um dolo intensíssimo, a que só pôs termo quando abandonou o país.
XII - Ademais, incumbindo sobre os pais o dever jurídico – e natural até –, nos termos do art. 1878.º do CC, de velarem pelo sustento, educação e segurança dos filhos, e naturalmente o seu respeito, o facto de viverem sob o mesmo tecto não pode deixar de exacerbar a culpa pelo facto, que se reiterou por centenas de vezes, na forma mais grave de manutenção de cópula completa por 504 vezes, na pessoa da filha SU, sem preservativo, com o risco de gravidez e transmissão de doenças sexuais, e na tentativa de coito anal por 60 vezes na filha SO, além de daquela ter abusado por 313 vezes, com o que o arguido revela uma personalidade perversa, indiferente a bens ou valores jurídicos fundamentais, bem presente na indiferença ao rogo da filha SU de que não lhe fizesse mal e ao sofrimento físico da filha SO, a quem a tentativa de penetração anal causou fortes dores, efeito que, como adulto, não podia desconhecer.
XIII - Na continuação criminosa a gravidade do facto é menor que no concurso real, na medida em que a execução das actividades aparece, aí, altamente facilitada, não sendo mais do que a consequência do «aproveitamento contínuo de uma certa relação na qual o criminoso se colocou» (cf. Eduardo Correia, ob. cit., pág. 205). Sempre que se comprove que a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa.
XIV - É esse o caso dos autos, pois de outro modo ter-se-ia de concluir que quem mais obrigação tem de velar pelo crescimento harmónico da personalidade dos filhos, tendo-os sob o seu tecto, e de os respeitar, mais benevolamente era tratado pela prática de actos de puro egoísmo, da maior repugnância, tanto à luz do direito como da consciência colectiva, quer no plano ético quer moral, sendo maior a culpa vista a relação próxima gerada pelos laços de filiação.
XV - A tese da continuação criminosa, em caso de menores que convivem com os pais, que deles abusam, de punição do arguido por um só crime – ou seja, pelo crime de maior gravidade, nos termos do art. 79.º do CP –, choca profundamente o sentimento jurídico, e carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente rejeitada de há anos a esta parte – cf., designadamente, os Acs. deste STJ de 28-01-1993, CJSTJ, tomo 1, pág. 177; de 01-04-1998, CJSTJ, ano VI, tomo 2, pág. 175; de 12-03-2002, 4454/01 - 3.ª; de 22-01-2004, CJSTJ, ano XII, tomo 1, pág. 179; de 24-11-2004, 3227/04 - 3.ª; de 15-06-2005, 1558/05 - 3.ª; de 14-02-2007, 4100/06 - 3.ª; de 05-09-2007, CJSTJ, ano XV, tomo 3, pág. 189; e de 16-01-2008, 4735/07 - 3.ª.
AcSTJ de 01-10-2008, proc. n.º 2872/08-3, Relator: Cons. Armindo Monteiro
I - Como regra, o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal) – art. 30.º, n.º 1, do CP –, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica for posta em crise, em que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente.
II - Nos termos do disposto no art. 30.º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa.
III - A recente reforma do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, introduziu no art. 30.º o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa.
IV - Esta alteração, correspondente ao n.º 2 do art. 33.º no Projecto de Revisão do CP de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
V - Essa discussão não mereceu conversão na lei por se entender que o legislador reputou tal desnecessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado, ao preceito citado.
VI - Diferente não é o pensamento de Jescheck, para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado, por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos em relação a cada acto individual, sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cf. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, ed. Bosh, pág. 652 e ss, e Acs. deste STJ de 10-09-2007, CJSTJ, Ano XV, tomo 3, pág. 193, e de 19-04-2006, CJSTJ, Ano XIV, tomo 2, pág. 169.
VII - A alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
VIII - Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
IX - Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
X - São circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos (veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido); o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.
XI - Resultando do acervo factual provado que o arguido se aproveitou, em todos os casos, da ausência de sua mulher e mãe das menores, filhas de ambos, da residência comum, para daquelas abusar sexualmente, servindo-se do ascendente sobre elas, como pai, são circunstâncias não exteriores ao arguido, mas próprias, por que providenciou, das quais tirou partido para satisfazer paixões lascivas, o seu instinto libidinoso, de que foram alvo crianças indefesas, incapazes de avaliar a amplitude e a gravidade do facto – nunca haviam até então mantido contactos sexuais com outrem – e de deduzirem oposição, de resto irrelevante, não se denotando qualquer predisposição para o facto criando uma menor exigibilidade de procedimento, apesar de ser visível a prática de modo mais que homogéneo, sempre idêntico, aliás, de execução. Não foi qualquer condicionalismo criado pelas filhas, que o temiam, que determinou o arguido à prática dos crimes, mas um desígnio interno, endógeno, firme, ao longo dos anos, num período temporal sucessivamente renovado, sempre próximo, evidenciando um dolo intensíssimo, a que só pôs termo quando abandonou o país.
XII - Ademais, incumbindo sobre os pais o dever jurídico – e natural até –, nos termos do art. 1878.º do CC, de velarem pelo sustento, educação e segurança dos filhos, e naturalmente o seu respeito, o facto de viverem sob o mesmo tecto não pode deixar de exacerbar a culpa pelo facto, que se reiterou por centenas de vezes, na forma mais grave de manutenção de cópula completa por 504 vezes, na pessoa da filha SU, sem preservativo, com o risco de gravidez e transmissão de doenças sexuais, e na tentativa de coito anal por 60 vezes na filha SO, além de daquela ter abusado por 313 vezes, com o que o arguido revela uma personalidade perversa, indiferente a bens ou valores jurídicos fundamentais, bem presente na indiferença ao rogo da filha SU de que não lhe fizesse mal e ao sofrimento físico da filha SO, a quem a tentativa de penetração anal causou fortes dores, efeito que, como adulto, não podia desconhecer.
XIII - Na continuação criminosa a gravidade do facto é menor que no concurso real, na medida em que a execução das actividades aparece, aí, altamente facilitada, não sendo mais do que a consequência do «aproveitamento contínuo de uma certa relação na qual o criminoso se colocou» (cf. Eduardo Correia, ob. cit., pág. 205). Sempre que se comprove que a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa.
XIV - É esse o caso dos autos, pois de outro modo ter-se-ia de concluir que quem mais obrigação tem de velar pelo crescimento harmónico da personalidade dos filhos, tendo-os sob o seu tecto, e de os respeitar, mais benevolamente era tratado pela prática de actos de puro egoísmo, da maior repugnância, tanto à luz do direito como da consciência colectiva, quer no plano ético quer moral, sendo maior a culpa vista a relação próxima gerada pelos laços de filiação.
XV - A tese da continuação criminosa, em caso de menores que convivem com os pais, que deles abusam, de punição do arguido por um só crime – ou seja, pelo crime de maior gravidade, nos termos do art. 79.º do CP –, choca profundamente o sentimento jurídico, e carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente rejeitada de há anos a esta parte – cf., designadamente, os Acs. deste STJ de 28-01-1993, CJSTJ, tomo 1, pág. 177; de 01-04-1998, CJSTJ, ano VI, tomo 2, pág. 175; de 12-03-2002, 4454/01 - 3.ª; de 22-01-2004, CJSTJ, ano XII, tomo 1, pág. 179; de 24-11-2004, 3227/04 - 3.ª; de 15-06-2005, 1558/05 - 3.ª; de 14-02-2007, 4100/06 - 3.ª; de 05-09-2007, CJSTJ, ano XV, tomo 3, pág. 189; e de 16-01-2008, 4735/07 - 3.ª.
AcSTJ de 01-10-2008, proc. n.º 2872/08-3, Relator: Cons. Armindo Monteiro
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