quinta-feira, 29 de maio de 2008

Aplicação da lei processual penal no tempo – direito ao recurso – recurso penal – admissibilidade de recurso – esgotamento dos recursos – roubo – burla informática e nas comunicações – sequestro – concurso aparente – concurso de infracções – regime penal especial para jovens – atenuação especial da pena
1- Para o efeito do disposto no art.º 5.º, n.º 2, al. a), do CPP, os direitos de defesa, para além dos que têm eficácia em todo o decurso do processo (art.º 61.º, n.º 1), são apenas os que se encontram consignados para a fase processual em curso no momento da mudança da lei.
2- A prolação da decisão final na 1ª instância encerra a fase processual do julgamento (Livro VII) e inicia, consoante o caso, a dos recursos (Livro IX) ou a das execuções (Livro X).
3- Ao se iniciar a fase dos recursos, o arguido inscreve nas suas prerrogativas de defesa o direito a todos os graus de recurso que a lei processual lhe faculta nesse momento.
4- A lei processual posterior que retirar o direito a um desses graus de recurso constitui um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
5- É recorrível para o STJ a decisão proferida pela Relação já depois da entrada em vigor da nova lei de processo que não reconheça esse grau de recurso, se a lei que vigorava ao tempo da decisão da 1ª instância o mandasse admitir.
6- É aplicável a nova lei processual à recorribilidade de decisão que na 1ª instância já tenha sido proferida depois da entrada em vigor dessa lei, independentemente do momento em que se iniciou o respectivo processo.
7- A lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido.
8- No caso de um roubo em que o agente do crime força a vítima a revelar o código secreto (PIN) do seu cartão de débito ou de crédito, para depois se apoderar dos proventos económicos que a utilização desse cartão obtém através do sistema bancário, em prejuízo da vítima, há uma consumpção de normas entre os crimes de roubo e os de burla informática, pois em ambos os casos o agente visa apoderar-se do património da vítima sem a sua autorização, embora no roubo se exija algo mais, o constrangimento através da violência ou da ameaça.
9- Essa relação de consumpção parcial de normas, em que alguns casos de crimes de burla informática também são puníveis como roubos, não é perturbada pelo facto da burla informática visar proteger ainda outros bens jurídicos que não os patrimoniais, pois trata-se de uma protecção reflexa e secundária, não assumida pelo legislador, que até criou outros diplomas com esse fim explícito.
10- O STJ tem firmado jurisprudência no sentido de que, sempre que a duração da privação de liberdade individual não exceda o que é necessário para a consumação do roubo, é de arredar o concurso real de infracções, reconduzindo a pluralidade à unidade sempre que tal privação se apresente como essencial (crime-meio) para alcance do fim (crime-fim), sendo o sequestro consumido pelo roubo, por via de uma relação de subsidiariedade
11- Sendo o plano inicial (ou subsequente) dos criminosos apoderarem-se de todos os bens das vítimas, em especial dos cartões de crédito ou de débito, para com o uso destes obterem maiores proventos do que os que transportavam fisicamente consigo, era indispensável manterem-nas sem liberdade ambulatória enquanto as mesmas não revelassem os códigos secretos e não fosse confirmada a veracidade da informação e concluídos os levantamentos/pagamentos.
12- Por isso, deve dizer-se que a privação da liberdade não excedeu, nos casos apreciados, o estritamente necessário à consumação dos roubos, tal como planeados e executados.
13- Tal é assim mesmo no caso de um roubo (hiper) agravado, no qual a privação da liberdade de uma das ofendidas foi de cerca de 10 horas, em que não se mostra necessário fazer intervir a norma do sequestro, pois «aquilo que os tribunais pretendem alcançar através do concurso efectivo melhor se atingiria fazendo funcionar, dentro da moldura penal do roubo, os normais factores de medida da pena» (Cristina Líbano Monteiro, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 15, n.º 3, em anotação ao Ac. do STJ de 2/10/2003).
14- Há que notar que, nos casos dos autos, estando os recorrentes condenados simultaneamente por crimes de roubo e de sequestro e devendo, agora, ficar apenas os de roubo, tal não significa, por si só, uma diminuição da sanção penal, pois que aos roubos assim (re)considerados acresce uma mais elevada censura objectiva e subjectiva, resultante de neles se considerar englobada uma maior privação da liberdade ambulatória do que a inicialmente considerada.
15- A atenuação especial da pena aos jovens adultos não implica a aplicação de uma pena meramente simbólica ou sequer aligeirada, antes o reconhecimento de que a imaturidade, própria de quem tem a personalidade ainda em desenvolvimento, merece da sociedade, em regra, uma menor severidade do que aconteceria se os mesmos crimes fossem cometidos por um adulto. Ao menos aos jovens deve ser reconhecida uma oportunidade de refazer a vida.
16- Deve recordar-se que no domínio do C. Penal de 1886, impregnado de valores que não são os democráticos de hoje, não era permitida, em caso algum, uma pena superior a 8 anos de prisão aos menores de 18 anos e superior a 16 anos de prisão aos menores de 21 anos.
AcSTJ de 29/05/2008, Proc. n.º 1313/08-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

Recurso de revisão – novos factos – anomalia psíquica – perícia psiquiátrica
A ser verdadeira a existência de uma doença do foro psíquico, não detectada na altura da condenação, que teve por efeito uma diminuição da imputabilidade do condenado quando cometeu o crime, tal constituiria um facto novo que, por si e conjugado com os restantes elementos apreciados no julgamento, poria em causa a justiça da condenação, não quanto à medida da sanção concretamente aplicada – caso em que a revisão não seria admitida (art.º 449.º, n.º 3, do CPP) – mas por aquela se ter reportado a um homicídio qualificado pela especial censurabilidade da conduta, resultante de circunstâncias mais ligadas à culpa do que à ilicitude (motivo fútil e escolha de um meio particularmente perigoso) e em que, portanto, um menor grau de imputabilidade poderia remover ou atenuar o desvalor de tais circunstâncias.
AcSTJ de 29/05/2008, Proc. n.º 1516/08-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

Receptação – responsabilidade civil emergente de crime – indemnização
I- O recorrente, como receptador, incorreu, solidariamente com o autor da burla, no preceituado no art.º 483.°, n.º 1, do CC, pois, com dolo, violou ilicitamente o direito que outrem tinha a que lhe fosse restituído um determinado bem próprio e, por isso, ficou obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação. Houve, pois, uma acção ilícita e dolosa do recorrente que, em comunhão de esforços e vontades com outrem, causou, directa e necessariamente, um dano patrimonial às demandantes.
II- Tal dano é constituído pala totalidade da quantia que ficou depositada na conta da empresa de que era sócio-gerente o recorrente, isto é, a toda a importância de que foram desapossadas as demandantes, pois foi a que o recorrente ajudou a guardar e a dissipar, sendo irrelevante, para este efeito, a quantia que constituiu a vantagem patrimonial do recorrente pela sua participação criminosa, combinada com o seu comparsa.
III- Como se decidiu em anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «...o crime de receptação é um facto que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuação de uma situação patrimonial anormal, decorrente de um crime anteriormente praticado por outrem, pelo que o seu agente viola também o direito de propriedade ou detenção do dono ou detentor da coisa deslocada».
AcSTJ de 29/05/2008, Proc. n.º 1665/08-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

4 comentários:

diconvergenciablog disse...

Boa tarde,
qual é o seu entendimento acerca da alteração substancial dos factos no processo penal (e a questão da qualificação juridica). Subscreve a tese do Dr Frederico isasca ou a do Prof. Marques da Silva?
Com os melhores cumprimentos

Simas Santos disse...

Fui eu que coloquei este post, mas nenhum dos acórdãos ali deixados é assinado por mim. Não sei assim se a pergunta me era dirigida.
De todo o modo, como são vários os sub-problemas em que se desenvolve que não percebi a que questão se quer referir.

diconvergenciablog disse...

Bom dia,
a questão era dirigida ao dr.Simas Santos.
Gostaria que, se pudesse, me indicasse qual a posição da jurisprudêcia e da doutrina, que na sua opinião tenha por boa, na questão da alteração substancial dos factos - saber se uma diferente qualificação juridica (do juiz) altera substancialmente os factos, como julgo que pensa o dr. Marques da Silva - Julgo que vinga a tese, nesse ponto, do dr. Frederico Isasca. Era esta a questão essencial, mas, se não for abusar, se pudesse, lançando mão da sua experiência profissional, relatar qual é a maior "quaestio" que esta problemática levanta na dinâmica do processo penal (tenho a ideia que está relacionada com a estratégia de defesa do arguido e impedir que esta seja comprometida, temperando dessa forma o inquisitório).
Com os melhores cumprimentos

Simas Santos disse...

Tirei um acórdão que trata desta questão, que penso não constitiu alteração de factos, mas é tratada como alteração não substancial dos factos.
Esse acórdão está disponível no sitio do STJ em texto integral, procurando acompanhar as mudanças do CPP am matéria de convolação.
É o seguinte o sumário na parte que interessa:

7 - A mera alteração da qualificação jurídica, isto é a convolação, quando assente na mesma matéria de facto, como o próprio arguido aceita acontecer no caso sujeito, não é uma alteração de factos (substancial ou não substancial), exactamente porque os factos são os mesmos, não foram alterados, embora o n.º 3 do art. 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) aditado pela Lei n.º 59/98 tenha vindo dispor que o disposto no n.º 1 desse artigo é correspondentemente aplicável quando o tribunal altera a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
8 - Ou seja, a mera alteração da qualificação jurídica não é alteração de factos (substancial ou não substancial), mas é-lhe aplicado o regime jurídico da alteração não substancial dos factos.
9 - E a mencionada alteração do art. 358.º do CPP nasceu até da jurisprudência constitucional sobre a alteração da qualificação jurídica produzida a propósito do Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 2/93, (de 27-1-93, DR IS-A de 10-3-93 BMJ 423-47) do Supremo Tribunal de Justiça, sobre a questão da convolação (Ac. do TC n.º 446/97 de 25-6-97) que foi reformulado pelo Ac. de uniformização de jurisprudência n.º 3/00. de 15-12-1999, DR IS-A de 11-02-00) no seguinte sentido: "Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa.
10 - Rixa é a situação de conflito ou de desordem em que intervêm obrigatoriamente mais de duas pessoas, e que é caracterizada pela oposição dos contendores sem que seja possível individualizar ou distinguir a actividade de cada um e que se traduz em actos e não apenas palavras ou gestos.
11 - Na participação em rixa punem-se apenas os intervenientes em rixa se não provar a sua responsabilidade em crime do homicídio ou de ofensas corporais; provando-se qualquer destes, respondem por ele e não por participação em rixa, que então fica consumida.
12 - Deve definir-se rixa como a situação de conflito ou de desordem em que intervêm obrigatoriamente mais de duas pessoas, e que é caracterizada pela oposição dos contendores sem que seja possível individualizar ou distinguir a actividade de cada um, não pode, pois, restringir-se a duas pessoas, como crime colectivo que é, ou de concurso necessário, porquanto nesse caso haverá apenas um conflito recíproco e não rixa.
13 - Hoje a pena não superior a 5 anos de prisão pode ser suspensa na sua execução dada a nova redacção do n.º 1 do art. 50.º do C. Penal, que elevou o respectivo limite
14 - Quando o limite atendível estava fixado em 3 anos de prisão, o acento tónico das exigências da lei estava situado sobre o juízo de prognose inicialmente referido e que relevava essencialmente para as possibilidades de reintegração do agente, na prevenção da reincidência, uma vez que aquele limite já precavia uma relativa gravidade do crime cometido.
15 - Mas o alargamento desse limite para 5 anos de prisão faz realçar, nesse excedente, a necessidade de ponderar criteriosamente as circunstâncias do crime na sua relação com o fim primeiro das penas: a protecção dos bens jurídicos, as necessidades de prevenção geral de integração e mesmo de intimidação.
AcSTJ de 03-04-2008, proc. n.º 4827/07-5