sábado, 17 de novembro de 2007

O crime continuado e a revisão do Código Penal ...

O Supremo Tribunal de Justiça tirou recentemente um acórdão em que se pronuncia sobre a interpretação a dar à nova redacção do art. 30.º do Código Penal (crime continuado) e a referência aos bens jurídicos pessoais.
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Vai abaixo sublinhado no sumário:
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Burla - elementos - engano - crime continuado - concurso de infracções - cúmulo jurídico - nulidade da confissão - coacção moral
1 – O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, sendo seus: (i) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; (ii) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (iii) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
2 – Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são, pois, o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
3 – Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo.
4 – A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros.
5 – O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos.
6 – Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. E a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado
7 – Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
8 – O engano a que o art. 217.º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada).
9 – Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais.
10 – Estando provado que o agente, visando obter quantias indevidas à custa da Direcção Geral de Protecção Social aos Funcionários Públicos e Agentes da Adminstração Pública – ADSE e conhecedor do modo de processamento do pagamento do regime convencionado, congeminou um plano que lhe permitisse, de forma enganosa, levar aqueles serviços a comparticiparem em consultas, exames médicos e tratamentos de fisioterapia que não tinham sido prescritos nem realizados se apropriou de três milhões novecentos e vinte e um mil cento e noventa e oito euros causando à ADSE o equivalente prejuízo, correspondnte ao valor de que se apropriou, estando perfeitamente consciente de toda essa realidade quis actuar da foma descrita com o fim de obter um enriquecimento patrimonial sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei não se inibindo de o levar a cabo, querendo-o, cometeu o crime de burla qualificada.
11 – Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
12 – O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente. Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
13 – Dos requisitos do crime continuado resulta também que, tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido. Foi este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 3 aditado ao art. 30.º do C. Penal pela Lei n.º 59/2007, quis integrar ao dispor: «o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentes pessoais».
14 – Pode dizer-se que seria então desnecessário tal aditamento, com o que se concorda. Mas o mesmo não permite a interpretação perversa que já foi apresentada de que daí resultaria a imperatividade do crime continuado quando nos vários crimes fosse sempre a mesma vítima. É que, como se viu, a matriz do crime continuado reside na diminuição considerável da culpa, por razões exógenas e só respeitada essa matriz é que se pode afirmar a ocorrência de crime continuado.
15 – A outra decorrência dos requisitos do crime continuado é a de que, para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores, é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
16 – A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, antes se pode afirmar que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.
17 – Nesse caso, o arguido não decidiu cometer novos crimes por dispor do esquema prático de execução que criara, antes está provado que construíu esse esquema para poder cometer múltiplos crimes, o que só por si, afastaria a unificação da sua conduta num crime continuado.
18 – Não há nulidade da confissão por “quase coacção moral” quando o arguido, apercebendo-se do que estava em jogo e, seguramente numa estratégia processual que lhe pareceu mais favorável aos seus interesses, quando se deu conta que seria possível documentar materialmente os seus actos lesivos, do que teve percepção quando se falou em peritos e em confronto com a documentação inserta nos autos, procurou beneficiar de uma confissão integral e sem reservas e se possível de um arrependimento, que procurou construir a partir da declaração da intenção de reparar os prejuízos causados, nunca concretizada.
19 – Hoje em processo penal, no caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta­lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas (art. 344.º, n.º 1 do CPP), o que aconteceu no caso, ficando resolvido no local e momento próprio, o carácter espontâneo e livre da sua convicção, que obviamente não pode ser abalada com uma tese frágil e insubsistente.
20 – Por outro lado, o que o C. Civil recolhe é a coacção moral no art. 255.º, prescrevendo que se diz feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração (n.º 1), a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro (n.º 2), não constituindo, no entanto, coacção a ameaça do exercício normal de um direito nem o simples temor reverencial (n.º 3). E esclarece no art. 256.º que a declaração negocial extorquida por coacção é anulável, ainda que esta provenha de terceiro; neste caso, porém, é necessário que seja grave o mal e justificado o receio da sua consumação.
AcSTJ de 8.11.2007, proc. n.º 3296/07-5, Relator: Cons. Simas Santos

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