segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Trindade Coelho e o direito (VI)

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Em 1896 tinha lugar em Lisboa o primeiro atentado anarquista – e o Governo fez um projecto de lei contra estes, mas as suas disposições abrangiam também, embora disfarçadamente, os republicanos. Contra isto dei na imprensa um grito de alarme que todavia ficou sem eco, e a lei foi promulgada em harmonia com o projecto do Governo – e eu, como delegado, tive de a aplicar como ela era.
De novo cresceram contra mim os ataques da imprensa, em vez de serem dirigidos contra a lei; – mas vendo eu que a ocasião era favorável para destruir esta, eu próprio escrevi um artigo contra mim mesmo (para não contradizer a corrente...), mas também contra a lei, artigo que os outros jornais transcreveram, atacando-me (mas desta vez também à lei) com a sua doutrina...
Eles não suspeitavam sequer de que o artigo era meu; mas consegui o que desejava e eu calculara: o Governo encarregou-me de fazer um novo projecto de lei, e eu fi-lo, sendo votado pouco depois no Parlamento sem alteração de uma palavra e muito a contento de toda a imprensa, que não sabia também que o projecto, e o seu relatório, eram meus (lei de 21 de Julho de 1899).
Além disso, no Congresso Internacional de Direito Penal, reunido em Lisboa, eu apresentava um opúsculo (Liberdade de Imprensa) indicando as bases de uma reforma liberal da lei de imprensa; o Ministro da Justiça convidava-me a colaborar com ele no novo projecto – e este, apresentado ao Parlamento, era convertido pouco depois na lei hoje em vigor; e outro projecto, feito por mim, punha os jornais a coberto do editor, entidade viciosa que não raro podia estorvar, nos termos da legislação antiga, o jornal e o jornalista; e, a pedido do Ministro, ainda fiz o extenso Regulamento do Ministério Público (hoje em vigor), e de colaboração com o juiz de instrução criminal, o doutor Francisco Maria Veiga, o projecto do Código de Processo Penal. Ao mesmo tempo, escrevia e publicava o livro Dezoito anos em África com o fim de desfazer as intrigas dos políticos e da política contra um amigo meu, o Conselheiro José de Almeida, cuja vida oficial em África tinha sido exemplar e a de um verdadeiro português antigo; e tendo-o reabilitado no conceito do País, mostrando a toda a luz, e com documentos, nesse livro de mais de 500 páginas, o que era e valia esse honrado homem, modelo de trabalhadores e de patriotas, ele mesmo me dizia depois, abraçando-me, ao ver o testemunho unânime da imprensa a favor dele, convencida pela verdade do livro, que «era o meu 2º Manuel Barradas», aludindo ao meu pobre condenado de Portalegre...
E no meio disto tudo, publicava a Revista de Direito e Jurisprudência, o livro Recursos Finais em Processo Criminal, e aguentava diariamente o serviço do Tribunal, que é o mais trabalhoso de Lisboa e do País,’ tendo, além das atribuições criminais, as cíveis e as fiscais. Em toda a minha vida não deixei de um dia para o outro o menor serviço ou um único processo – excepto um, que, sendo o mais importante e complicado de quantos há muitos anos se ventilam nos tribunais portugueses, esteve em minha casa pouco mais de um mês – regressando ao Tribunal somente findo este prazo, mas com uma tão extensa alegação minha por parte do Ministério Público, que formava um grosso volume de perto de 600 páginas.

Trindade Coelho, «Autobiografia», in Os Meus Amores

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