terça-feira, 28 de novembro de 2006

Sobre o Procurador Especial

Um «Procurador Político Especial» para Controlar a acusação pública e influenciar a justiça e as Magistraturas?

1. Depois de o bom senso parecer ter voltado, veio, de novo, nos últimos dias, a ser agitado o inacreditável plano da criação de um Procurador Especial incumbido de substituir o Ministério Público e o Juiz de Instrução sempre que, de acordo com os desejos do poder político do momento, o primeiro não acusasse e o segundo não pronunciasse quem Parlamento entendesse.
Este fim-de-semana, o semanário «O SOL» sugeriu mesmo que, por de trás deste plano, estaria eventualmente a vontade política de vir a responsabilizar criminalmente o anterior PGR e os magistrados que dirigiram a investigação do processo CASA PIA, na sequência dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito ao caso do ENVELOPE 9.
Numa «democracia normal» tal sugestão teria merecido, de imediato, o desmentido do Governo ou dos parlamentares proponentes deste insólito plano. Mas nada aconteceu e, diz o povo, “quem cala consente”.
É grave!
2. A inspiração para tão peregrina proposta reside – alegam –, no exemplo de outras democracias.
A inspiração não veio, com certeza, da União Europeia ou de outros países da Europa.
Ela veio, certamente, daquela democracia que – apesar de o ser –, mantêm a pena de morte, (inclusive para menores de idade que são alimentados e mantidos sãos até a idade certa para a execução), a prisão perpétua, prisões como Guantanamo e outras ainda mais clandestinas e doutrinas penais e jurisprudência que justificam a tortura.
Veio, enfim, da democracia norte-americana!
Acontece que, até nesse país, os Procuradores Especiais só são activados quando está em causa um crime cometido por um Presidente da República e por alguém da sua administração, uma vez que a função de PGR é exercida pelo Ministro da Justiça federal, que pertence, ele próprio, ao gabinete do Presidente.
O Procurador Especial norte-americano tem pois como função substituir um PGR que, por pertencer ao Governo de que o Presidente norte-americano é o chefe, não oferece garantias de independência e pode, por isso, ser, justamente, acusado de manipulação política na investigação e acusação, sempre que está em causa alguém do gabinete.
Este Procurador Especial actua, contudo, no âmbito das leis normais de processo penal e não no âmbito de nenhuma investigação político-parlamentar.
Este Procurador Especial é, assim, nomeado para que o poder político não se imiscua nos assuntos da Justiça, para que, nos EUA, se possa manter a separação dos poderes do Estado e a imparcialidade real e simbólica da Justiça e da investigação penal.
3. Pelo contrário, a proposta da maioria governamental portuguesa tem, exactamente por consequência ou objectivo permitir ao poder político interferir e substituir-se aos órgãos do poder judicial (Ministério Público e Juiz de Instrução) encarregados de, com independência e imparcialidade, conduzirem as investigações criminais e decidirem, racional e fundadamente nos termos da lei, quem deve ou não ser submetido a julgamento.
De facto, o Código de Processo Penal Português permite já, no âmbito da Acção Popular, a qualquer cidadão e, por isso também, a qualquer deputado ou membro do Governo, constituir-se assistente e substituir-se ao Ministério Público no controlo do (não) exercício da acção penal pública, caso discordem do despacho de arquivamento por este proferido.
Se fosse este, na verdade, também, o seu objectivo, a proposta da criação do Procurador Especial, não teria qualquer utilidade superveniente e nada pareceria, por isso, justificá-la do ponto de vista da organização judiciária constitucional.
Se se quisesse, de facto, permitir um mais largo controlo pelos cidadãos da renúncia da acusação pública, aprofundar-se-iam os mecanismos da Acção Popular, criando um prazo para, depois de publicados os despachos do Ministério Público, qualquer cidadão a poder exercer.
4. Por isso, embora não completamente clarificado, o que parece querer introduzir-se de novo no nosso ordenamento jurídico é algo realmente diferente. Algo bem grave e perigoso para a democracia.
É a criação de um Procurador Político Especial que actue tendo por base, directamente, uma investigação político-parlamentar, investigação essa que não está sujeita à garantia judiciária, tanto no que respeita à função do Juiz de Instrução, como, ainda, no que respeita às garantias da defesa em processo penal.
Não é, aliás, por acaso que se configura nesse projecto o poder de o referido Procurador Político Especial actuar sobre o despacho de arquivamento do Ministério Público, como, ainda, contra o próprio despacho (transitado) de não pronúncia proferido pelo Juiz de Instrução.
Nada pois assemelha este projecto de Procurador Especial português ao Procurador Especial norte-americano.
Ele tem mesmo um sentido contrário.
Na verdade, para além dos exemplos recentes da história político-judiciária portuguesa, o que, a nível mundial, de mais parecido se produziu em termos de figuras afins com este projecto foi o Procurador Especial russo Vichinsky e as comissões do senador americano McCarthy.
5. Estamos pois, claramente, perante uma clara violação da separação dos diferentes poderes do Estado e a criação de uma jurisdição especial e política para a investigação e acusação de determinados tipos de crimes e pessoas.
Não foi, contudo, por acaso que o nosso constituinte de 1976 defendeu a autonomia do Ministério Público perante o poder político.
Dizia então o deputado Barbosa de Melo:
«O Partido Popular Democrático espera que seja inspirado num princípio de autonomia e no princípio da funcionalidade para judicial do Ministério Público […] Entende o Partido Popular Democrático agora, e suponho que o entenderá depois também que o Ministério Público deve ser estruturado por forma a que a intervenção dos juízes não esteja dependente da pressão indirecta que durante muitas décadas neste país se fez através do Ministério da Justiça e sobre o por intermédio dos agentes do Ministério Público»
Aliás, já dois séculos antes, na Assembleia Nacional Constituinte (1789 -1791) francesa, Thourez, um jurista e deputado que também desempenhou as funções de Presidente da Cour de Cassation, se apercebera da contradição em que se estava a incorrer quando se queria atribuir a acusação ao poder político (no caso o executivo), referindo com rara clarividência:
«L’accusation publique tient essentiellement à l’ordre judiciaire, et l’ordre judiciaire entier n’est qu’une partie de la constitution. On s’est appuyé sur ce sophisme, que le pouvoir exécutif n’existait que pour la nation: ce principe est vrai en lui, mais il n’est pas juste quand on s’occupe de la constitution; ainsi le pouvoir exécutif n’étant point la nation, n’agissant pas contittionellement pour elle, ce n’est point à lui à nommer les accusateurs publics. Le pouvoir judiciaire influe chaque jour sur les citoyens, vous ne l’avez pas confié au pouvoir exécutif. L’accusation ne pourrait devenir ministérielle, sans être oppressive. Qui croira que, pour assurer la liberté, on a pensé à en faire une institution ministérielle?»
Ora, foram precisamente estes riscos de politização da Justiça e dos Tribunais que a Constituição da República Portuguesa e o Estatuto do Ministério Público, entretanto melhorado e aperfeiçoado por Vera Jardim, quiseram evitar.
E foi ainda este Estatuto português do Ministério Público que o TPI copiou e introduziu no seu ordenamento para garantir a sua isenção e imparcialidade.
6. Por outro lado ainda, com esta proposta de atribuir ao Parlamento a competência para a nomeação de um Procurador Especial que há-de desempenhar as funções do Ministério Público, colocam-se, também, em causa as competências próprias e exclusivas do Presidente da República a quem a Constituição comete a função de nomear o Procurador-Geral da República.
O Procurador-Geral da República é, com efeito, a figura de topo do Ministério Público, única magistratura que a Constituição incumbe do exercício independente da acção penal pública.
A nomeação de uma figura que o substitua ou aqueles que dele dependem constitui pois uma diminuição clara do seu estatuto constitucional.
Em todo o caso, mesmo que não venha a ser aprovado, este projecto não deixa, por isso, de constituir já um forte aviso e uma séria e ilegítima pressão sobre a acção do novo PGR.
7. Entretanto, alguma coisa parece, finalmente, ter começado a mexer no unanimismo frio e cinzento em que caiu a vida cívica portuguesa nos últimos tempos.
Alguns constitucionalistas, alguns comentadores políticos – mesmo os mais críticos do Ministério Público – parecem ter-se, finalmente, apercebido de que os avisos e receios antes manifestados pelos magistrados a propósito de outros «pequenos e inocentes desvios» não eram meros «reflexos corporativos» e, mesmo que timidamente, começaram a contestar a constitucionalidade desta ideia e do caminho trilhado pela maioria no que respeita à política de direitos, liberdades e garantias, contudo, indispensável que aqueles que, no seio da maioria, ainda guardam a memória e a tradição de luta pela Democracia, pelo Estado de Direito e pelos direitos, liberdades e garantias façam prevalecer a sua voz!
É que a questão não reside já, fundamentalmente, no Estatuto do Ministério Público, ela reside antes na democracia e nas liberdades dos cidadãos.
Cuidado!
Desta vez, é já o cerne do Estado de Direito que está em causa!

Lisboa, 27 de Novembro de 2006
A Direcção do
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Editorial nº 14 www.smmp.pt

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