No ano de 1976, a reacção legislativa à campanha do PCP contra Sá Carneiro com uma violação grosseira do segredo bancário tomou impossível, até há muito pouco, o controlo fiscal. A espantosa acumulação de erros do processo Casa Pia vai criar um tal regime de escutas telefónicas que vai liquidar por muitos anos a investigação criminal. A campanha do PCP contra Sá Carneiro merece ser recordada: antes do 25 de Abril, Sá Carneiro tinha contraído um empréstimo no BES para comprar acções. Com o encerramento da Bolsa, o pagamento parece ter sido adiado. O PCP, que tinha ocupado o BES e vasculhado minuciosamente a sua contabilidade, obteve a informação pormenorizada sobre este tremendo escândalo e desencadeou uma campanha contra Sá Carneiro. (...) O remédio foi blindar as contas bancárias contra qualquer acesso externo, criando um regime parecido com o da Suíça. A diferença é que o segredo bancário não serviu para atrair dinheiro em busca de refúgio contra investigações policiais ou fiscais. Serviu para fomentar a fraude fiscal e a economia paralela e contribuir para o apodrecimento da administração fiscal manietada por leis absurdas. Com o processo da Casa Pia vai suceder precisamente o mesmo: o processo constituiu uma espantosa acumulação de erros e de crimes impunes, sem que fosse possível encontrar, dentro do sistema, remédios, com um mínimo de eficácia, contra os atropelos sistemáticos aos direitos humanos de uma investigação ainda por cima ineficaz. As sucessivas violações do segredo de justiça não são graves apenas pela divulgação de informações que nunca deveriam ser públicos: foram gravíssimas pelo que foram revelando sobre o modo como foi conduzida a investigação. Ao centrar a investigação de tais atropelos nos jornais e jornalistas que revelaram aquilo que nunca deveria ter acontecido (sem que ninguém fosse responsabilizado), a acusação pública agiu como os governos ditatoriais que processam os que denunciam crimes ou escândalos porque afectam a imagem do país: não se trata de saber se houve ou não atropelos; o que importa é que a divulgação dos atropelos prejudica a imagem da justiça. Só isso explica que possam surgir em Portugal, onde se julgava existir um estado constitucional baseado na separação de poderes, a proposta de uma comissão destinada a controlar as decisões judiciais. Já sabemos o que têm sido as decisões judiciais. Também sabemos que juízes que se assumem como funcionários e que estão dispostos a destruir o sistema, como forma de luta reivindicativa, não são juízes. Já sabemos que os conselhos são o exemplo perfeito do fenómeno muito estudado da captura dos reguladores pelos regulados. No entanto, o Governo não pretende mudar nem o autogoverno das magistraturas nem a forma como são escolhidos ou promovidos os juízes: constatando, como aquele Presidente do Conselho que por cá reinou longos anos, que essas coisas da democracia e da separação de poderes não são para os portugueses (que têm uma outra tradição), resolveu criar um órgão para controlar os juízes. «Chassez le naturel, il revient au gallop». Em França foi criada uma comissão para controlar as escutas administrativas. Por cá, vamos criar uma para controlar as escutas judiciais. «Só foi pena», deve pensar o inenarrável major, «que tivessem acordado tão tarde; bem sei que os meus advogados já me garantiram que as minhas vão ser anuladas: há sempre uma nulidade qualquer, porque o legislador teve o cuidado de as tornar inexequíveis; mas se esta comissão já existisse, não estaria agora com estes problemas que têm posto em causa a minha imagem e criado dificuldades à minha carreira de gestor de árbitros e de fundos públicos».
Saldanha Sanches, Expresso/Economia, 18Fev06
Saldanha Sanches, Expresso/Economia, 18Fev06
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