Por Maria João Guimarães
Ricoeur, um pensador com obra vasta e eclética, morreu aos 92 anos. Era um dos mais importantes filósofos franceses do pós-guerra e abordou temas como a memória e a história, o ser e a acção, a utopia ou o perdãoIn Público
Morreu na madrugada de quinta para sexta-feira o filósofo francês Paul Ricoeur, mas o anúncio oficial só foi feito ontem. Ricoeur deu instruções para que as cerimónias fúnebres fossem estritamente reservadas a família e amigos.
O filósofo de 92 anos sofria de problemas cardíacos.
O homem que age e sofre, a vontade e o involuntário, a utopia ou a memória e a história são alguns dos temas da muito diversa e eclética obra de Ricoeur, em que tocou áreas da política, justiça, psicanálise, exegese bíblica, poética e teoria da interpretação.
Pode-se descrever Paul Ricoeur de muitas maneiras, sublinhava ontem o diário Le Monde na sua edição on-line. "Ricoeur engagé ou distante, ignorado ou celebrado, da fenomenologia ou da hermenêutica, homem de fé, de ideias, de amizades, de combates". Mas há algo de único em Ricoeur: para o Monde, é o sentido do diálogo, a começar pelo diálogo consigo próprio e com o outro, o diferente de si, o que pensa e age de outro modo.
A sua atitude fundamental: "Dar crédito ao outro, reconhecer que o outro tem razão, mesmo quando não se partilha as suas posições", escreve o director do jornal em editorial. O Libération descreve-o, também em editorial, como um "intrépido candidato a todos os debates". "Há verdade noutro lugar que não em nós próprios", disse numa entrevista ao jornal francês L"Express.
Esta "abertura ao outro" revelou-se também no contacto de Ricoeur com outras escolas filosóficas ignoradas em França, como nos anos 70 a filosofia analítica dominante no mundo anglo-saxónico (de Austin ou Searle). Ele parte da fenomenologia, uma disciplina com ambição científica que tenta explicitar as vivências da consciência, procurando conciliá-la com a hermenêutica filosófica, que assume que a relação do homem com o mundo e com os outros é sempre uma relação de interpretação, tal como se tratasse de um texto. Em Soi-même comme un autre (1990) e Temps et Récit (1983), o próprio sujeito interpreta-se como uma narrativa situada no tempo. Ricoeur destaca-se pelas aplicações práticas que faz da hermenêutica, como as suas reflexões sobre o perdão."Perdemos hoje mais do que um filósofo", reagiu o primeiro-ministro francês Jean-Pierre Raffarin. "A tradição humanista europeia está de luto pelo seu mais talentoso porta-voz."
"Face aos dramas da nossa época, Paul Ricoeur não parou de afirmar com força a exigência de diálogo e de respeito do outro", disse o Presidente francês, Jacques Chirac.
As duas guerras na vida de Ricoeur
Ricoeur nasceu em Valence (Sul de França), no dia 27 de Fevereiro de 1913, numa família protestante. O pai morreu no início da Primeira Guerra Mundial, a mãe pouco depois, deixando Ricoeur ao cuidado dos avós.
O jovem professor de filosofia do secundário foi, apesar de pacifista, mobilizado como oficial do Exército em 1939. Foi feito prisioneiro em Maio de 1940, e continuou detido na Alemanha nos cinco anos seguintes.
Terminada a guerra, é nomeado para a Universidade de Estrasburgo, onde ensina até 1957, após uma passagem pelo Centre National de Recherche Scientifique (CNRC). Passou ainda pela Sorbonne, onde entrou em 1957 para sair, desiludido, em 1965. No início dos anos 60 foi preso por causa das suas posições a favor da independência da Argélia.
Decidiu juntar-se à jovem universidade de Nanterre, onde viveu, mal, o Maio de 68 e pior os anos seguintes, vítima de ataques verbais e físicos. Demite-se em 1970 e vai para a Universidade de Luvaina (Bélgica). Ainda volta a Nanterre até 1981. Passou ainda regularmente pela Universidade de Chicago e, antes, por um colégio quaker e pelo Divinity School.
Memória, história e perdão
A relação entre a memória e a história foi um tema caro a Ricoeur, especialmente no seu último grande livro, La mémoire, l"histoire, l"oubli, publicado em 2000, em que questiona o porquê de ser dada uma determinada importância a certos acontecimentos históricos como o Holocausto e outra a momentos como o genocídio arménio ou a era McCarthy nos Estados Unidos ou ainda o papel francês no Norte de África - e coloca a hipótese de certos acontecimentos serem "sobre recordados" e outros "sub recordados".
Na obra há também um espaço para o papel do perdão, que Ricoeur considera essencial. Como explicou numa entrevista ao PÚBLICO em 1994, o perdão não concedido, mas pedido - "o problema não é perdoar, mas pedir perdão" e com limites: "Só as vítimas podem perdoar, e elas não são obrigadas a perdoar. O perdão não é um dever. Pedir perdão afronta o imperdoável. Actualmente, compreendo muito bem que muitos dos meus amigos judeus digam que não podem perdoar, porque a sua família foi exterminada em Auschwitz. É bom perceber que há um lugar para o imperdoável. Com Nuremberga, introduzimos a ideia de crime imprescritível contra a humanidade e, por isso, o perdão tem limites."
Na que é considera a sua obra maior, a trilogia Temps e Récit, de 1983-85, discute ficção e história, reflecte sobre a escrita que tem como tema o passado e ultrapassa a mera questão da análise linguística para abordar a verdade no conhecimento histórico.
O Libération resume o ponto central da obra de Ricoeur como a busca de resposta a uma só questão: "como o homem, na sua fragilidade, mantém o seu esforço de existir e o seu desejo de ser".
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