domingo, 8 de maio de 2005

Morosidade processual: o direito e o avesso

Por Noronha do Nascimento, Juiz Conselheiro no STJ, no Público de hoje:
A recente questão, mediaticamente publicitada, de tribunais competentes ou incompetentes para julgar um processo criminal, trouxe à tona da água uma das inúmeras causas que provocam a morosidade dos Tribunais.
A morosidade destes tem, basicamente, dois tipos de causas: umas de natureza organizacional, outras de natureza processual.
Os conflitos de competência e jurisdição entre tribunais (que são inúmeros) pertencem às de natureza processual, e arrastam os processos por meses e meses; ainda agora me saiu em sorteio um desses conflitos destinado a saber se uma regulação de poder paternal (que é um processo urgente) deverá ser julgada numa comarca do Alto Minho ou do Ribatejo.
Como é possível que seja a própria lei a impor que, num caso urgente como este, o conflito deva subir ao Supremo Tribunal para uma decisão que acaba por ser meramente interlocutória e nada decide quanto ao fundo da questão?
Sempre que há alterações à lei orgânica dos tribunais ou aos códigos de processo há uma revoada de conflitos de competência ou de jurisdição que são estruturalmente iguais e morosos. Com a nova orgânica dos tribunais administrativos aqueles conflitos vão aumentar em flecha e, por simpatia, aumentará a morosidade processual: saber se um acidente de viação por causa de um semáforo semi-avariado deve ser julgado no tribunal de comarca ou no administrativo, se o despedimento de um funcionário de uma empresa pública deve ir para o tribunal administrativo ou de trabalho, e assim sucessivamente vai ser (ou já é) o pão nosso de cada dia, enquanto o autor da acção - a quem pouco importa que a competência seja do tribunal a ou b - desespera com a espera de uma decisão que nem sequer é definitiva.
Foi para obviar a todo este labirinto que, há já quase dois anos, o falecido Presidente do S.T.J., Cons. Aragão Seia, apresentou no Ministério da Justiça - depois de discutido no Conselho Superior da Magistratura - um projecto para reformular este sistema.
Pretendia-se com ele desjurisdicionalizar os conflitos de competência e de jurisdição que passavam a ser decididos, sem recurso, pelo Colégio dos presidentes dos Tribunais de 2ª instância; ou seja pelos Presidentes dos Tribunais da Relação ou por estes e pelos presidentes dos Tribunais Centrais Administrativos (de 2ª instância) conforme os casos, de molde a que em prazo muito curto se definisse qual o tribunal competente para o acto ou para o julgamento.
O projecto referia-se apenas aos casos de conflito, mas poderia ser facilmente alargado àqueles outros em que o conflito aparece travestido sob a capa de um recurso de agravo; e com ele eliminava-se, de vez, os meses de espera que tais incidentes provocam.
Tal proposta fez parte, aliás, de um pacote mais vasto englobando outras propostas que o C.S.M. remeteu ao Ministério e destinadas a enfrentar vários estrangulamentos dos Tribunais: mapa judiciário do país, formação de magistrados, etc.; simplesmente após um momento inicial em que o Ministério ainda elaborou um pré-articulado legal, o texto de Aragão Seia passou (pensamos nós, porque dele não mais se ouviu falar) ao rol dos perdidos e não achados.
Desjurisdicionalizar outros incidentes processuais com funções apenas interlocutórias corresponderá de certeza a um enorme ganho de tempo nos processos.
Não será uma medida facilmente perceptível e sensível à opinião pública por força da sua tecnicidade; mas a eficácia que ela traria na movimentação dos processos será bem maior do que outras mais populares e mais perceptíveis, mas que trazem consigo muita parra e pouca uva.

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